O dia 20 de novembro é atualmente registrado como Dia da Consciência Negra, em alusão à morte de Zumbi dos Palmares neste dia, no ano de 1695, com 40 anos de idade.
Este dia é parte de uma política pública de promoção de igualdade racial, fruto de longos anos de luta do Movimento Negro brasileiro, que nunca aceitou sua condição de desumanidade gerada pelo colonialismo, que se perpetua após a abolição, por meio do cruel racismo brasileiro, que não só desumaniza, mas também exclui, silencia e mata.
Em 2003 foi sancionada a Lei 10.639 que passou a compor a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), e traz em seu artigo 79-B a obrigatoriedade do dia 20 de novembro como parte do calendário escolar brasileiro, como Dia da Consciência Negra. Dia este que deve ser de celebração à história e à cultura africana e afro-brasileira, como parte do trabalho realizado pela comunidade escolar ao longo do ano letivo e nunca como uma ação isolada e descaracterizada do artigo 26-A, que é parte da mesma lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na escola, ao longo do ano letivo, atrelada a todas as áreas do conhecimento e em todas as etapas de ensino, como orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (DCNERER), publicada em 2004 como documento orientador para a Lei 10.639/2003.
Em 2011, a celebração do dia 20 de novembro em forma de lei ultrapassa os muros da escola e ganha a amplitude dos outros espaços, por meio da Lei 12.519, em seu artigo 1º institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra para ser celebrado.
Esta introdução é para melhor compreender o contexto do então 20 de novembro, para que possamos refletir sobre: o que de fato fazer no dia 20 de novembro? Como comemorar? O que comemorar? O que seria esta Consciência Negra que devemos celebrar?
Considerando os espaços escolares e também os demais espaços da sociedade brasileira, o dia 20 de novembro deve ser um dia de ações de celebração à resistência negra no Brasil, inclusive é isto que a morte de Zumbi dos Palmares representa, uma pessoa que lutou por liberdade e por sua condição humana até o fim. Sua morte não foi o fim da resistência negra à escravidão, pelo contrário, a figura de Zumbi dos Palmares foi uma motivação para que a luta pelo fim do sistema escravocrata brasileiro continuasse, por isso neste dia, deve-se promover ações que apresentem e celebrem a história e a cultura africana e afro-brasileira em nosso país, dar visibilidade a toda esta riqueza que o colonialismo negou e silenciou, mesmo sendo parte crucial de nossa história e de nossa identidade.
As comemorações devem se referir às histórias não contadas dos reis, rainhas e dos diferentes povos africanos que para cá vieram, de forma escravizada, interrompendo o secular processo de desenvolvimento humano, civilizatório e tecnológico que África vivia desde o surgimento da humanidade. Infelizmente ainda tem-se “comemorações” que apenas reproduzem a história eurocêntrica, que escravizou e desumanizou africanos e seus descendentes, lhes roubando saberes seculares e colocando-se a si mesmos como donos da ciência e padronizando seus valores como universais em detrimento dos valores de outros povos. Pesquisas e investigações precisam ser realizadas e apresentadas a respeito do quão valorosa é a história negra no Brasil, a riqueza dos elementos culturais que compõem a história brasileira, revelando sujeitos e referências que valorizem a população negra no Brasil.
Embora o Brasil seja um país racista em sua estrutura e ainda seja muito difícil o enfrentamento a este racismo que perpassa todas as áreas da sociedade e nos perpassa em nossos sentidos e atitudes, ainda que por muitas vezes de forma inconsciente. Sabe-se que o racismo é o pai do genocídio negro, da solidão da mulher negra, da exclusão da população negra em espaços de poder ao passo que é maioria nos sistemas penitenciários. Enfim, embora tudo isto seja realidade, com inúmeros dados que a comprovam em diferentes pesquisas ao longo do país, escolheu-se celebrar a resistência negra, a engenhosidade em sobreviver a quase quatrocentos anos de escravização, a força de nossos ancestrais na luta pela abolição e por construir uma outra história diferente da história imposta pelo colonizador ao longo deste anos de pós-abolição em que se tem lutado por acesso a todos os espaços outrora negados, inclusive os espaços escolares e acadêmicos – este ano em específico vamos celebrar a atualização da lei da reserva de vagas para cotas, que inclui as cotas étnico-raciais, a Lei 14.723, sancionada em 13 de novembro de 2023. Devemos celebrar cada pequeno/grande sucesso da política de promoção de igualdade racial no Brasil, que ainda que esteja distante de alcançar a sonhada igualdade racial, já alcançou a muitas pessoas e fez a diferença em muitas histórias. Devemos celebrar também as novas gerações que têm se manifestado em dar continuidade à luta por igualdade racial, advinda de nossos antepassados, honrando assim o legado que têm recebido destes anos de resistência e construção de uma história negra com seu devido valor.
Há muitas formas de se pensar o termo “consciência”, mas aqui será pensado de acordo com as concepções freirianas, que ao longo de sua obra, trata a consciência como uma tomada de conhecimento da realidade a ponto de trazer transformações sobre esta realidade por meio de reflexões e ações concretas como compromisso com sua sociedade. Celebrar Consciência Negra parte do princípio de compreender a realidade da população negra no Brasil, que ainda sofre em profundos e diversos níveis as terríveis consequências dos séculos do desumano escravismo.
Celebrar Consciência Negra é, sobretudo, refletir sobre esta realidade e sobre formas de enfrentá-la e construir novas histórias que possam de fato promover igualdade racial, honrar a luta dos que vieram antes de nós e dar acesso digno às novas gerações, para além do que seu pertencimento racial lhes relega. E para isto é importante conhecer, porque conhecer traz poder e liberdade para agir. É importante conhecer intelectuais negras, cientistas, trajetórias de pessoa que em sua identidade racial mudaram a história do Brasil e do mundo, retirar da invisibilidade estas histórias, sujeitos e culturas, dar-lhes ouvido e repercussão até que não sejam mais meros mitos subjetivos do passado, mas que sejam memórias vivas com continuidades por meio de todos nós.
Viva Zumbi dos Palmares!!
Viva a Consciência Negra!!
Referências
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília: MEC/Seppir, 2004.
BRASIL. Lei nº 10.639, de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, Seção 1, p.1, 9 jan. 2003.
BRASIL. Lei Nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra. Diário Oficial da União. Brasília-DF, 11 de novembro de 2011.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980.
Flávia Rodrigues Lima da Rocha
Possui graduação em História (2005) e mestrado em Letras: linguagem e identidade (2011), ambos pela Universidade Federal do Acre (Ufac). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. É professora Adjunta da Ufac, onde é lotada na área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, onde ministra as disciplinas de Estágio Supervisionado do Ensino de História e coordena o Programa de Residência Pedagógica do Curso de Licenciatura em História. Na Ufac também é professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e lidera o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre; e tem coordenado, desde 2015, o Evento “Semana em Favor de Igualdade Racial” e desde 2018 coordena o Novembro Negro da Universidade Federal do Acre. É editora chefe da Revista Em Favor de Igualdade Racial, com Qualis B1. Coordena o Projeto Afrocientista, em âmbito local, desde 2021. É sócia da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN) e este ano de 2023, presidiu o 4º Congresso de Pesquisadores(as) Negros(as) da região Norte (Copene Norte).