No longínquo ano de 2006, a diretora e roteirista Sofia Coppola apresentou à plateia do 56º Festival de Cinema de Cannes seu mais recente filme, Marie Antoinett, adaptação do livro Marie Antoinett: The Journey, da historiadora Antonia Fraser. O filme recebeu aplausos e vaias do público e dividiu as opiniões da imprensa. Aqueles que gostaram, exaltavam a interpretação extremamente estilizada e humanizada das figuras históricas; aqueles que não gostaram usaram os mesmos aspectos para afirmar que Sofia havia feito um retrato totalmente incoerente da época. O fato é que a polarização de seu lançamento não impediu que o filme se tornasse uma referência cultural para uma geração de filmes e séries. Isso se deve principalmente ao fato de Sofia Coppola ter feito sua Maria Antonieta sobre as lentes da New Romantic.
Maria Antonieta foi com certeza umas das obras mais ousadas de Sofia Coppola. Vencedora do Oscar de melhor roteiro original em 2004 por “Encontros e Desencontros” (2003), ela tinha carta verde para executar o projeto que quisesse, portanto ela não perdeu a oportunidade de tirar do papel um em que estava escrevendo há muito tempo: adaptar o livro sobre Maria Antonieta da historiadora Antonia Fraser, com quem Sofia já trocava cartas desde 2001. Em entrevista à Vogue, a diretora afirmou ter escolhido a biografia escrita por Fraser por ser “a melhor… cheia de vida, não um drama histórico seco”. Além de ousado, o projeto também foi o mais caro, custando 40 milhões de dólares, e tendo como principais cenários: o Palácio de Versalhes, o Petit Trianon, a Ópera Nacional de Paris, o Castelo de Vaux-le-Vicomte, o Castelo de Chantilly, todos esses na França, e o Palácio Belvedere em Viena, na Áustria.
Em momento algum a diretora e roteirista quis fazer um retrato fiel de uma época, mas compreender a vida de uma jovem tirada de seu país de origem aos 14 anos, “presa” em um palácio, em uma terra estrangeira, para ter filhos e servir de modelo social. É nessa humanização que Coppola abre mão do realismo para trabalhar as subjetividades, mostrar a pressão em cima de Maria Antonieta para consumar o casamento com um homem que ela mal conhecia, a pressão para dar luz a um herdeiro, e como válvula de escape dessa pressão, uma rebeldia frente aos costumes franceses, os excessos de bebidas, comidas e festas. Não há decapitações ou um retrato das tramas políticas mais complexas que envolviam a França no século XVIII, o que não quer dizer que o filme exclua a política, ela só não é o foco, sua função dentro da narrativa é ressaltar características dos personagens ou como os mesmos eram vistos pela sociedade da época.
O que ocasionou o estranhamento que muitas pessoas tiveram ao assistir Maria Antonieta na época de seu lançamento foi que Sofia Coppola fez seu filme pelas lentes do movimento New Romantic. O New Romantic foi um movimento musical e comportamental do início da década de 1980, os “novos românticos” mudaram a cultura dos clubes, recuperaram o romantismo e na música pop introduziram sintetizadores, linhas de baixo, baterias eletrônicas e melodias marcantes, que influenciaram as décadas seguintes. E no filme o New Romantic é trabalhado de diversas formas pela direção juntamente com a trilha sonora, os figurinos e as atuações, todos alinhados para apresentar as características do amadurecimento de uma rainha.
A música é parte fundamental da narrativa de Maria Antonieta tanto quanto os diálogos ou os figurinos. A construção do filme cresce junto com a trilha sonora. Ela foi montada a partir de mixtapes fornecidas por Brian Reitzell. Ou seja, ao invés de ter uma trilha clássica, com Christoph Willibald Gluck, que era o compositor favorito da rainha, por exemplo, Maria Antonieta tem uma música mais punk, rock e pop: New Order, The Cure, Bow Wow Wow. Músicas da juventude da diretora e que ela ouviu enquanto escrevia o roteiro. Essas mixtapes foram apelidadas de “Versailles Mix 1” e “Versailles Mix 2”. E as referências vão além, com Coppola convidando o ícone do rock Marianne Faithfull para interpretar a mãe de Maria Antonieta, a Maria Teresa da Áustria rainha conhecida em toda Europa como “a glória de seu sexo e o modelo de reis”.
Outro pilar na composição do filme é o figurino. Nenhum outro artifício ajudou mais os atores a entrarem no personagem do que os trajes de Milena Canonero, que levaria o Oscar de melhor figurino em 2007. A própria Maria Antonieta era conhecida por não repetir roupa, o mesmo valeu para o filme. De um ateliê em Roma, Canonero desenhou mais de 70 roupas para a atriz Kirsten Dunst, e mais centenas para os coadjuvantes e figurantes. As jóias são do século XIX, mas foram escolhidas por comunicarem a juventude e esperança da jovem rainha. Os calçados ficaram por conta do designer Manolo Blahnik, que projetou uma coleção inteira só para o filme, mas teve que dividir protagonismo com um Converse All Star que Sofia colocou em uma cena para representar a jovialidade da monarca.
Por essas e outras características, Maria Antonieta se tornou um divisor de águas nos dramas de época. Antes os filmes desse gênero tendiam a ser mais parecidos com o ultra tradicional (e muito bom por sinal) Orgulho e Preconceito do Joe Wright, de 2005. Mas Maria Antonieta precedeu uma onda de projetos que exploram o passado através de lentes mais irreverentes: as séries The Great, The Pursuit of Love, filmes como Emma e Anna Karenina. É graças à Maria Antonieta que assistimos ao elenco de Bridgerton dançar ao som de um cover de música da Ariana Grande e estranhamos, e até mesmo lembramos do baile de máscaras do filme.
Portanto, no ano em que o filme Maria Antonieta debuta, vale lembrar do legado cultural que esse filme deixou, sendo fonte de inspiração para desfiles até pouco tempo, como foi com a coleção de outono 2020 da marca Moschino, para a Milão Fashion Week, e o legado histórico também, não que Sofia Coppola tenha redefinido sozinha todo o legado de 250 anos de vilanização de uma pessoa, mas com certeza forneceu uma nova perspectiva sobre a monarca que ressoa até hoje.
Atualmente o filme está disponível na plataforma de Streaming HBO Max