A despeito do que a palavra possa sugerir, nem só de negação pura e simples vive o negacionismo. Tampouco trata-se de um fenômeno apenas de falta de conhecimento, como se os que nele tomassem parte o fizessem por mera ignorância. Definitivamente, não.
A bem da verdade, o fenômeno social do negacionismo é complexo. Geralmente, envolve, como numa teia, as dimensões do conhecimento e da política. Ora, vencer os desafios da ignorância é tarefa hercúlea, dado que sua magnitude e força inercial tendem a perpetuá-la. Ocorre que o elemento político que com ela se irmana no negacionismo torna essa tarefa ainda mais difícil.
Em primeiro lugar, porque os grupos políticos que se beneficiam do negacionismo estimulam e propagam ignorância, valendo-se dele como estratégia política e como capital político. Ou seja, para esses grupos, o negacionismo é instrumento e ganho político ao mesmo tempo Tal mostra, então, que nem todos os negacionistas são ignorantes, no sentido preciso do termo. Em verdade, os que se beneficiam do negacionismo (os que estão no topo da hierarquia) são muito conscientes do que fazem – o que não se pode dizer dos que estão sob sua influência (os que estão na base).
Em segundo lugar, submetidos que estão a seus líderes, os que aderem às teses negacionistas por convicção, fazendo delas objeto de credo, dificilmente serão convencidos de que estão errados. Apresentem-se a eles os estudos e os dados mais sólidos que forem, e eles, fechando-se, resistirão aos fatos agarrando-se a argumentos os mais estapafúrdios ou mesmo falsos.
Tivemos prova disso durante a pandemia da Covid-19. Os negacionistas diziam que a pandemia era uma invenção; que o alto número de mortos era uma farsa. Tendo chegado a vacina, diziam que ela tinha saído muito rápido, que não dispúnhamos de tecnologia suficiente para tanto. Mas, por outro lado, em que pese nossa pouca tecnologia, diziam que as vacinas traziam chips que não se podiam ver a olho nu e que eram capazes de fornecer algum tipo de controle sobre nós.
Diziam ainda que não tínhamos segurança de que as vacinas funcionariam bem, porque “experimentais”. Mas, de outra banda, diziam igualmente que quem tomasse iria morrer de câncer daqui a alguns anos.
Embora tenhamos visto a queda no número de mortos depois da aplicação massiva das vacinas, ainda hoje há quem se negue a tomá-las, repercutindo negativamente no quadro vacinal do país e contribuindo para o fortalecimento de doenças antes controladas. Pior ainda: mesmo hoje, há quem defenda a cloroquina.
Coisa assim, entre o patético e o bizarro, não poderia perdurar sem que houvesse gente poderosa a estimular e se beneficiar dela. Por isso, seria impossível captar o sentido do negacionismo se focássemos tão só na ignorância e na simples negação. Há muito de estratégia política nele. Quando não podem apenas negar os fatos, os grupos que dele se beneficiam entram a disputar seu significado, mudando de opinião ou emitindo opiniões contrastantes, conforme as circunstâncias o exijam.
No presente momento, podemos ver isso em torno do debate acerca das mudanças climáticas. Durante muito tempo, os refratários simplesmente negavam o aquecimento global e as mudanças climáticas que dele decorrem. Quando, enfim, tais mudanças se fizerem sentir, de modo intenso e devastador, passaram a discutir seus significados, seu alcance, suas causas etc.
Entre nós, acreanos, Marcio Bittar – político que está sempre na vanguarda do retrocesso – já disse que “quem muda o clima é Deus”. Todavia, a fim de mostrar-se esclarecido, diz também que o homem muda, mas “muda quase nada”. Ao mesmo tempo, recorre a argumentos aparentemente científicos para desqualificar a própria ciência, afirmando “que a crença de que as ações do homem provocam o aquecimento global não foi comprovada cientificamente”.
A questão é que Bittar só aceitaria a voz da comunidade científica se esta sustentasse os interesses do grupo econômico-político a que ele está atado: os agrocratas. Para ele, portanto, a questão não é científica, e sim econômico-política. Daí ser compreensível o fato de ele incluir Deus na discussão.
É mister dizer que, quando o senador traz Deus para o debate, seu objetivo verdadeiro é trazer certos grupos religiosos cuja tendência é endossar a onipotência de Deus em face da impotência do homem. Bittar não está se dirigindo aos cientistas. Na verdade, está falando para esses grupos religiosos que podem vir em seu socorro. Vê-se, por este ângulo, que Deus é um simples meio para dado fim.
Trocando em miúdos, impossibilitado pelos fatos de negar as mudanças climáticas, Bittar as coloca na conta de Deus que, seguindo seus argumentos, estaria mudando o clima e matando milhões em todo o mundo. Dessa forma, Bittar atua como defensor daqueles que lucram às custas da natureza. Pois, se é Deus quem muda o clima, o que podemos fazer, senão deixar as coisas em suas mãos?
Como vemos, os casos da pandemia da Covid-19 e das mudanças climáticas são muito instrutivas a respeito da força do negacionismo. Mesmo com centenas de milhares de mortos, a pandemia continuou sendo negada ou minimizada. Mesmo com os fenômenos climáticos (secas intensas, tempestades diluvianas, calor infernal, ciclones etc.) deixando vários mortos e destruição sem conta, as mudanças climáticas ou são negadas ou relativizadas.
Os casos da pandemia da Covid-19 e das mudanças climáticas também ajudam a entender o sentido do negacionismo. Especialmente, ambos os casos evidenciam como, neste fenômeno social, se enlaçam as dimensões do conhecimento (a ignorância) e da política. Tendo feito uma opção política, esta condiciona largamente a aceitação ou a rejeição do que quer que se apresente aos negacionistas, funcionando como uma espécie de filtro. Nisso reside a razão para que manifestem tenaz hostilidade às instituições educacionais e científicas.
Esta dura e desconcertante realidade mostra que não podemos nos conduzir pela crença iluminista de que basta levar conhecimento às pessoas, esclarecendo-as, para que elas se libertem. O negacionismo alimenta a ignorância. A ignorância alimenta o negacionismo. Este, por sua vez, mobiliza e articula a ignorância, dando a ela usos e direções.
Diferentemente da que estávamos acostumados a observar, a ignorância de que aí se trata não é uma ignorância humilde, que reconhece seus limites e se abre ao conhecimento. Em verdade, a ignorância manufaturada pelo negacionismo é uma ignorância orgulhosa, militante e – não menos importante – perigosa, capaz de morrer e de matar.
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Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).