Trato do PL 1904/2004, também batizado como “PL do estupro”. Pensado maiormente por homens, ele atinge perversamente as mulheres.
Sou homem também. Sei. Mas, se falo, não é para tomar o “lugar de fala” das mulheres, como se diz hoje, nem tampouco para silenciá-las.
O que pretendo, em verdade, é trazer a visão de um homem que teme os efeitos desse projeto nefasto, abjeto. Temo, em primeiro lugar, pelas mulheres próximas a mim, a quem muito amo. Temo por elas. Em segundo lugar, temos pelas mulheres em geral. Uma sociedade que não é segura para todas as mulheres não pode ser – com raras exceções – segura para nenhuma.
Uma das coisas que não pode, de maneira nenhuma, ficar fora de nossa reflexão sobre o projeto é a urgência com que foi tocado. Poucos segundos – menos de 30, segundo alguns jornalistas e parlamentares – para tratar de um tema com enorme complexidade e de impactos gigantescos na vida das mulheres.
Entretanto, não há urgência social para tratar do tema. Essa demanda não vem de uma sociedade que, assolada por um problema, exigiu célere resposta do parlamento (Se fosse, hein?). Sim. Dessa vez e por coisas assim, a palavra parlamento seguirá assim mesmo, com minúscula, algo mais de acordo com sua pequenez moral.
Se urgência há, e disso não duvidamos, ela deve ser buscada em outro lugar, com outros sujeitos, portadores de interesses inconfessos.
Da parte de Arthur Lira, há urgência porque o projeto serve como elemento de barganha na tentativa de garantir a eleição de seu sucessor para a presidência da câmara. Sim. Dessa vez e por coisas assim, também a palavra câmara seguirá assim mesmo, com minúscula, algo mais de acordo com sua pequenez moral.
Do lado da bancada evangélica, também há urgência. Inegavelmente. Abandonando qualquer pudor para fazer o jogo do bolsonarismo mais rasteiro, tal bancada tem urgência em fazer o governo se indispor com os evangélicos.
Prima facie, não haveria saída sem custos para o governo. Caso se posicionasse contra o projeto, o governo seria acusado de “abortista” (como fizeram com a primeira-dama, Janja). Caso se posicionasse a favor ou ficasse indiferente a sua votação, o governo receberia não poucas críticas de sua base.
Ora, é importante lembrar que as mulheres foram fundamentais para a vitória de Lula e, por consequência, para a derrota de Bolsonaro. Sobretudo, as mulheres progressistas jamais veriam com bons olhos a indiferença por parte do governo. Foi a forte resistência ao projeto, manifesta nas redes sociais, na imprensa e nas ruas, que tornou mais fácil para o governo colocar-se contra ele.
É importante sublinhar, com todas as forças, a sordidez que move os defensores do projeto. Seu principal proponente, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou pública e claramente que estava “testando o presidente”. Com essa afirmação, algo cínica, demonstrou melhor do que ninguém que, para atingir seus interesses políticos mesquinhos, a vida e os corpos das mulheres são apenas moedas que ele pretende converter em capital político.
Para ele, pouco importa se o projeto vai infringir mais sofrimento às mulheres, arrancar-lhes direitos duramente conquistados. O que importa, é se o governo será prejudicado diante da opinião publicado.
Eles se dizem “conservadores”. Mas não são. O que são mesmo é reacionários. Não querem “conservação”. O que querem e promovem é “retrocesso”. Ao propor um projeto dessa natureza, resgatam o que há de pior na história pretérita e aproximam o país do que há de mais nocivo em algumas teocracias.
Eles dizem defender “a família”. Mas qual família? Acaso acreditam que uma família pode ser fundada sob a violência do estupro?
Eles dizem defender “a moral e os bons costumes”. Já que o projeto de sua lavra é mais rigoroso com a vítima de um estupro do que com o estuprador, podemos dizer que, para eles, o estupro pode ser considerado um “bom costume”?
Aproveito a oportunidade para fazer uma necessária distinção entre “moral” e “moralismo”.
Moral todos nós temos. Ela diz respeito a um conjunto de valores que formamos ao longo de nossa vida e que, nas mais variadas esferas de nossa vida, guiam nossas ações. Trata-se de algo fundamental para a vida em sociedade.
Portanto, não são apenas os religiosos que têm moral. Todos temos, reitero. Consequentemente, a moral religiosa não é a única existente em nossa sociedade. Tomada em si, não há nada na moral religiosa que faça com ela seja reputada como a melhor das morais. Ela é apenas uma.
Como o nome já denuncia, o “moralismo” pressupõe uma moral, qualquer moral. A diferença é que o moralismo, como fenômeno social – geralmente de caráter religioso, mas não só -, tende a desconsiderar as outras morais (os outros valores), de outros grupos. Donde um de seus principais traços ser o autoritarismo. O grupo (ou os grupos) que o encarna tende a dar ares de universalidade a sua moral específica e a querer impô-la a outros grupos e, se encontrar caminho aberto, à inteira sociedade.
Não há Estado laico, democrático e de direito que não seja violentado sob o comando de um moralista.
Vejam. O grupo que propõe o PL em questão diz agir em defesa da vida. Portanto, querem-se agindo em defesa de um valor universal, que a todos atenderia igualmente. Mas a especificidade – a falsa universalidade – de seus valores está patente no modo como enxergam um problema que atinge primeira e diretamente as mulheres.
Como grupo formado e/ou conduzido majoritariamente por homens, enxergam tudo de cima, de fora. Não buscam colocar-se no lugar da mulher violentada, procurando enxergar as coisas de sua perspectiva. Ao contrário. Buscam impor sua ótica às mulheres, sufocando-as e acrescentando mais violência às violências que elas já sofrem.
Desse modo, vê-se que não se trata de uma moral verdadeiramente universal. Em verdade, é uma moral masculina. Mais exatamente, é uma moral machista, pois que não é apenas forjada por homens. É uma moral forjada por homens, para homens e contra as mulheres.
Com visão tacanha e autoritária, esses senhores – acompanhados de algumas mulheres – legislam sobre os corpos e as vidas das mulheres. Decidem tudo por elas, sem ao menos ouvi-las. As mulheres estão presentes no debate, claro. Mas como objeto. Não como sujeitas.
Num caso extremo como o do estupro seguido de gravidez, não há opção indolor. Manter a gravidez terá consequências dolorosas. O mesmo se pode dizer de sua interrupção. É preciso dizer que um aborto não é um passeio no parque ou uma sessão de cinema, com pipoca e refrigerante? Seus traumas se arraigam no corpo e na alma da mulher, deixando inapagáveis marcas.
Nada mais justo que a mulher – e/ou sua família, em caso de menores de idade – possa decidir o que fazer sem que ninguém lhe aponte o dedo com julgamento morais. Tenho “as mulheres de minha vida”. E se um dia – toc-toc na madeira – algo assim ocorresse a uma delas, lutaria com todas as forças para que nós, os atingidos pela violência, decidíssemos o que fazer para minorar o sofrimento, já que não estaria em nossas mãos apagá-lo (o sofrimento) de nossas vidas.
Por tudo isso e por outras coisas que não foi possível tratar aqui, fica claro que o referido projeto representa uma estratégia em que o ódio sequestra o amor para sua causa. E assim, aos olhos de muitos, o ódio se apresenta com a aparência e a linguagem do amor. Dissimulação e ódio incontido, apenas. Assanham-se os afetos para, em uma suposta defesa da vida, negar a vida.
E, se aumentar a pena para estupradores, resolve o problema, repõe a justiça? Não. Porque, na base, a criminalização das mulheres vítimas de estupro continua. Em palavras refinadas, porque sou poeta, digo: a emenda saiu pior que o soneto. E em outras palavras, porque nem sempre as palavras refinadas dão conta de nossa indignação, digo: estão tentando perfumar o cocô.
Concluo dizendo o que aconselha o bom senso: as mulheres devem ser ouvidas, acolhidas, respeitadas, protegidas. E isso não é nada além do que os homens exigimos para nós mesmos. A isso, sem medo, chamamos justiça.