No Brasil, a cada 60 segundos uma mulher é agredida fisicamente, e, a cada oito minutos, um estupro é realizado. Entre janeiro e junho de 2020, foram praticados 648 feminicídios em todo país.
Essas informações, nada animadoras, são alguns dos principais dados divulgados na 14º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicada no mês de outubro de 2020, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que, apontou, ainda, o aumento de 166,7% nos números de feminicídios no Acre, somente no primeiro semestre de 2020. Infelizmente, isso nos garante o primeiro lugar, pelo terceiro ano consecutivo, do ranking nacional de acreanas mortas: 1,8 a cada 100 mil mulheres.
Em entrevista concedida ao Portal Catarinas, em 14 de outubro de 2020, a procuradora de justiça do estado do Acre, Patrícia Rego Amorim, afirmou:
“”Hoje, o Acre é o estado menos seguro para mulheres. O feminicídio é o último grau da violência contra mulher, mas temos vários níveis de agressão, física, psicológica e moral. “Se nós lideramos o ranking de feminicídio, você imagina os estágios anteriores.”
No contexto, é necessário ponderar que os dados estatísticos não são suficientes para compreender o complexo fenômeno da violência doméstica em âmbito local. Todavia, são parâmetros necessários para apresentamos algumas reflexões importantes, além de soluções efetivas que possibilitem a diminuição de crimes tão repugnantes, na maioria das vezes praticados, reiteradamente, por longos anos, causando traumas insuperáveis para as mulheres e que abalam toda a família.
Atualmente, o nosso estado, seguindo a tendência nacional, vem experimentando uma série de novas ferramentas direcionadas à violência doméstica, todas promovidas pela comunhão de esforços do governo estadual e órgãos integrantes do sistema jurídico penal, através da Rede de Proteção à Mulher.
Os mecanismos incluem meios de prevenção, acolhimento, registro e apuração efetiva dos crimes, como o aplicativo “Botão da Vida”, vinculado à Patrulha Maria da Penha, o “Botão do Pânico”, além da realização de campanhas informativas / educativas, e a disponibilização da Central de Atendimento à Mulher (telefone 180).
Não podemos deixar de considerar de extrema relevância todas as ações de prioridade impulsionadas pelo poder público, que, inclusive, mantém todo um aparato para provê-las por meio da Secretaria de Estado de Assistência Social, dos Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres (SEASDHM) e Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), do Tribunal de Justiça.
Apesar da existência de uma estrutura mobilizada para dirimir os efeitos da violência doméstica no Acre, percebe-se claramente a necessidade de reformulação de algumas ações propostas pelo poder público. Os altos índices estatísticos nos mostram que elas não são eficazes, basta olharmos as incontáveis reclamações diárias de problemas não resolvidos, como, por exemplo, impunidade e revitimização das mulheres.
Na maioria das vezes, cria-se uma sensação de que os meios utilizados são meros atos de publicidade, pois não conseguem manter um fluxo de soluções adequadas e continuadas, não existindo uma efetividade coletiva.
Há quase 10 anos, em 2012, o Ministério Público Estadual realizou um diagnóstico da rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, em Rio Branco (AC), apresentando, entre outras conclusões:
“Um novo redesenho da Rede e a repactuação de um fluxo mais operacional; a capacitação dos profissionais; mudanças nos processos internos de cada órgão buscando a sensibilização dos servidores para melhorar o atendimento; pactuar metas de redução da violência; promover ações de repressão qualificada e reforçar a sensação de justiça; atuar fortemente na prevenção e criar um efetivo banco de informações integradas.”
Em agosto de 2020, o Tribunal de Justiça do Acre, através da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), divulgou uma pesquisa em que o público-alvo foram mulheres vítimas de violência doméstica que tiveram seus processos prescritos, sendo constatado que:
“As ameaças por parte do companheiro, de seus familiares ou de pessoas próximas a ele impedem que as mulheres estejam presentes nas audiências; nenhuma das entrevistadas recebeu qualquer apoio de psicólogos ou assistentes sociais de qualquer Instituição, desde a porta de entrada (delegacias) até a porta de saída (Judiciário); as vítimas consideram que o sistema de Justiça oferece uma resposta demorada ou muito demorada nos processos de violência doméstica.”
As informações científicas indicadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário local demonstram nitidamente que algumas das ações desencadeadas pelo poder público padecem de eficiência. Após quase uma década, os problemas envolvendo a prevenção e a repressão da violência contra as mulheres perpetuam-se.
Diante do que foi exposto, é imprescindível uma ação integrada dos atores que compõem a Rede de Proteção à Mulher, reforçando a conscientização, mas, principalmente, sedimentando um fluxo que ultrapasse a fase inicial da violência e culmine no trânsito e julgado da sentença penal condenatória.
Ao tratarmos de fluxo, ressaltamos que as mulheres acreanas – vítimas de violência – possuem um aparato razoável para atendimento inicial das demandas. Entretanto, logo aparecem as falhas do sistema, como, por exemplo, a falta de acolhimento integral, acesso à justiça e punição do agressor. Precisamos avançar para propormos soluções reais.
A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) é a porta de entrada da grande maioria dos casos de violência doméstica em todos os municípios do Acre. Através do órgão policial se inicia formalmente o procedimento para punição dos agressores.
Na capital, a Delegacia da Mulher, mesmo com todo o reforço provido pelo governo estadual, permanece convivendo com uma realidade frustrante. Com mais de 4.300 (quatro mil e trezentos) investigações policiais sem conclusão, e, a instauração mensal média de 80 (oitenta) novos procedimentos, a unidade policial não consegue prosseguir com o fluxo da persecução penal.
Em uma manifestação formal (quase um pedido de socorro) formulada no mês de setembro de 2020, as três autoridades policiais lotadas na Delegacia da Mulher de Rio Branco (AC) relataram:
“Sublinhe-se mais uma vez nesse cenário, a presença de 4.816 inquéritos em trâmite nesta unidade policial, portanto, lê-se indiscutível insuficiência de servidores para tamanha demanda abraçada pela DEAM, trazendo os indesejáveis resultados, prescrições de inquéritos, além da sobrecarga e frustação dos funcionários que por mais que se empenhe nessa corrida contra o tempo tem, já na largada, a consciência de que muitas vidas ficarão para trás. Sim, vidas, pois a violência contra a mulher termina deteriorando toda a estrutura familiar, tanto pelo sofrimento imediato das vítimas quanto pela repetição do ciclo de violência, tendo em vista a rotina opressora, humilhante, brutal e irracional dos relacionamentos dos pais, presenciadas pelos filhos, conferindo heranças malditas e perpetuando a nocividade da violência por gerações.”
Ainda, como consequência dos problemas internos da porta de entrada do estado para apuração dos crimes de violência doméstica, surge um grave problema pouco conhecido da população em geral: muitos fatos criminosos comunicados por meio de notificações da maternidade local, delações das centrais de denúncia 180 e 181, e, até requisições ministeriais e judiciais, não são devidamente investigados.
Afora os problemas internos encontrados na fase policial de apuração dos fatos, também encontramos diversas outras falhas em nível estrutural nos demais órgãos da justiça, que provocam a morosidade no processo de punição dos agressores.
Assim, é evidente que precisamos mudar esta realidade, pois não adianta o Estado propor ferramentas de melhoria para combater a violência doméstica, sem que seja priorizado um fluxo concreto de atuação, criando-se uma sintonia desde o ato inicial até a fase final.
É preciso que os gestores percebam que existe uma “cultura” mecanicista e setorial nos órgãos públicos, passando a estimular uma integração e planejamento em suas ações.
Logicamente, compreendemos que os órgãos estatais em geral mantem diversos problemas estruturais, entretanto, sabemos da necessidade de se priorizar as áreas que estão no “olho do furacão”, como é a violência doméstica no Acre.
As medidas já implantadas pelo poder público estadual, principalmente inerentes ao momento inicial de atendimento aos casos de violência doméstica, têm alcançado bons resultados. No entanto, observamos que algumas soluções concretas podem ser implantadas em curto prazo para formatação de um fluxo mais eficaz, como a criação de um complexo de atendimento a mulher, integrando todos os órgãos da Rede de Proteção, otimizando, assim, os recursos estruturais, além da expansão dos programas de conscientização na rede pública e privada de ensino, do registro por meio eletrônico das ocorrências, do atendimento virtual e da criação de um sistema de informática integrado ou único.
Existem muitas outras soluções, ideias e ações propostas ao longo dos anos sobre o debate do combate à violência doméstica no Acre, inclusive a atualização da Lei Maria da Penha, que irá completar 15(quinze) anos que entrou em vigor no próximo mês de agosto.
O certo é que as mulheres não podem esperar. É preciso urgentemente colocar em prática soluções concretas para diminuir os sofrimentos diários enfrentados pelas acreanas diante do cenário tão crítico da violência doméstica. O estado precisa agir com mais eficácia e planejamento nas suas ações para vencer esse grave problema.