Por Maycon David de Souza Pereira
O colono e o fazendeiro
Diz o brasileiro
Que acabou a escravidão
Mas o colono sua o ano inteiro
E nunca tem um tostão.
Se o colono está doente
É preciso trabalhar
Luta o pobre no sol quente
E nada tem para guardar.
Cinco da madrugada
Toca o fiscal a corneta
Despertando o camarada
Para ir à colheita.
Chega à roça. O sol nascer.
Cada um na sua linha
Suando e para comer
Só feijão com farinha.
Nunca pode melhorar
Esta negra situação
Carne não pode comprar
Pra não dever ao patrão.
Fazendeiro ao fim do mês
Dá um vale de cem mil-réis
Artigo que custa seis
Vende ao colono por dez.
Colono não tem futuro
E trabalha todo dia
O pobre não tem seguro
E nem aposentadoria.
Ele perde a mocidade
A vida inteira no mato
E não tem sociedade
Onde está o seu sindicato?
Ele passa o ano inteiro
Trabalhando, que grandeza!
Enriquece o fazendeiro
E termina na pobreza.
Se o fazendeiro falar:
Não fique na minha fazenda
Colono tem que mudar
Pois há quem o defenda.
Trabalha o ano inteiro
E no natal não tem abono
Percebi que o fazendeiro
Não dá valor ao colono.
O colono quer estudar
Admira a sapiência do patrão
Mas é um escravo, tem que estacionar
Não pode dar margem à vocação.
A vida do colono brasileiro
É pungente e deplorável
Trabalha de janeiro a janeiro
E vive sempre miserável.
O fazendeiro é rude como patrão
Conserva o colono preso no mato
É espoliado sem lei, sem proteção
E ele visa o lucro imediato.
O colono é obrigado a produzir
E trabalha diariamente
Quando o coitado sucumbir
É sepultado como indigente.
Com essa poesia de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), intelectual negra brasileira, que muito tem a nos ensinar com seus escritos monumentais, que iniciamos as reflexões da Coluna Antirracismo em Pauta de hoje. “O colono e o fazendeiro” foi publicado no livro Antologia Pessoal em 1996 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Editora UFRJ).
Utilizo-me da poética de Carolina de Jesus para refletir juntamente com os leitores dessa estimada coluna sobre um fenômeno que perpassa a existência de todos (ou quase todos) que passaram por esse planeta nos últimos milhares de anos, o trabalho. Há poucos dias “celebramos” o feriado do dia 1º de maio, que segundo a legislação brasileira[1], é consagrado o “Dia do Trabalho”, assim como em outras partes do mundo. Este momento é utilizado pelos movimentos trabalhadores de diversas vertentes para refletir sobre o sentido político dessa data, trazendo seu verdadeiro intuito de celebração, o “Dia do Trabalhador”.
É nítida a iminente preocupação de que a classe trabalhadora deve começar a repensar seu lugar nesta sociedade capitalista, há tentativas, acredito que frustrada, de discursos que buscam fazer com que o trabalhador não se sinta mais classe trabalhadora, os transformando em “empreendedor”, seria bastante cômico se não fosse ultrajantemente trágico. A quem interessa essas narrativas?
É justamente neste sentido que é trazido a poética de Carolina Maria de Jesus no início desse escrito, para que possamos refletir sobre as questões que envolvem aquilo que conhecemos como trabalho. Quem trabalha? Quem mais lucra em cima do trabalho alheio? Como estão organizados os postos de trabalhos? Quem ocupa profissões de prestígio? Quem ocupa as profissões com menores remunerações e por quê? Quem detém o poder em uma sociedade capitalista e racista?
Aproveitando o ensejo, também trouxemos alguns números referentes aos dados do segundo trimestre de 2023 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), analisados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e publicado em novembro do ano passado em relação ao mercado de trabalho.
Uma das primeiras informações contidas nas análises está diretamente relacionada a taxa de desocupação, lugar em que a população negra ocupa o topo do ranking com 9,3%, enquanto a taxa de população não negra figura com 6,3%. Esmiuçando esses dados e realizando um recorte de gênero, as mulheres negras apresentam 11,7% de desocupação, homens negros 7,8%, enquanto mulheres e homens não negros apresentam 7% e 5,7% de desocupação respectivamente. Se tratando de remuneração as mulheres negras recebem, em média, R$1.617, enquanto as mulheres não negras recebem em média R$2.674. Já a média salarial para os homens negros fica em torno de R$1.968 e para os homens não negros o valor fica em torno de R$3.471 (Dieese, 2023).
A Dieese também observou que apenas 2,1% das mulheres negras estão ocupando cargos de direção e gerência, enquanto para mulheres não negras essa taxa é de 4,3%. Em se tratando de homens negros 2,1% ocupam cargos de direção, enquanto 5,5% de homens não negros estão nesses cargos. Nessa mesma pesquisa, também é apontado dados em relação ao trabalho desprotegido[2], em que mulheres negras ocupam 47% e homens negros 46% nesse tipo de ocupação, enquanto mulheres e homens não negros apresentam 34% (cada um dos grupos) desses postos de trabalho (Dieese, 2023).
É possível observar por meio desses dados que existe uma desigualdade brutal que separa os grupos populacionais da sociedade brasileira, indicando que a população negra, sobretudo as mulheres negras, estão entre os percentuais de desemprego, com os menores salários, ocupando o topo daqueles que figuram enquanto trabalhadores desprotegidos e por obviedade os que menos ocupam cargos gerenciais, ou seja, seguem ocupando os cargos com menor reconhecimento social e recebendo as mais baixas remunerações, o que corrobora para o aumento da desigualdade na sociedade brasileira.
Carolina Maria de Jesus no poema de abertura desta reflexão transcrevia a sociedade em que estava inserida por meio de suas vivências, e por meio de suas obras e de sua grandeza enquanto intelectual, penso que ela não estava se referindo apenas sobre “o colono e o fazendeiro”, sua perspicácia sem nenhuma dúvida pode nos ajudar a compreender mais afundo o processo de sedimentação dessas desigualdades, que tem suas raízes do racismo e que sustenta as sociedades capitalistas há séculos, e segundo a autora “diz o brasileiro que acabou a escravidão”. Reflitamos!
Que também possamos refletir no verso “O colono quer estudar”, pois ainda acreditamos que a educação pode ser libertadora e emancipadora, um dispositivo que pode proporcionar um movimento de ruptura e quebra de engrenagens muito bem sedimentadas e afixadas ao longo de séculos de espoliação das populações negras. Que possamos ser Carolinas!
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 7.466, de 23 de abril de 1986. Dispõe sobre a comemoração do feriado de 1º de maio – Dia do Trabalho. Distrito Federal: Diário Oficial da União, 1986.
DEPARTAMENTO Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. São Paulo, 2023.
JESUS, Carolina Maria de. Antologia Pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
[1] Lei nº 7.466, de 23 de abril de 1986.
[2] Trabalhador desprotegido é aquele que está empregado sem carteira assinada, autônomos que não contribuem com a Previdência Social e trabalhadores familiares auxiliares, a exemplo motoboys, entregadores, diaristas etc.
Sobre o autor
Maycon David de Souza Pereira é mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Graduado em Fisioterapia pela Faculdade Barão do Rio Branco (FAB). Discente do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Acre (Ufac). Integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).