Por Gisele Almeida e Felipe Souza
O Acre registrou em menos de uma semana a condenação de um homem que não teve o nome identificado pelo crime de estupro de vulnerável e a prisão de um outro pelo mesmo crime. Os dois são pais e cometeram esse ato com as próprias filhas. As meninas possuem entre 12 e 13 anos. Apesar dos crimes serem parecidos, um ocorreu em Rio Branco e o outro no município de Rodrigues Alves.
De acordo com as informações obtidas por meio da Polícia Civil do Acre (PC-AC), após as investigações foi possível observar a gravidade dos abusos sofridos pelas vítimas. “A Justiça, ao analisar as evidências apresentadas pelo polícia, proferiu uma sentença que resultou em uma pena de 34 anos de reclusão para o agressor. A condenação demonstra o comprometimento das autoridades em garantir proteção das vítimas e a responsabilidade dos abusadores”, disse o delegado de Polícia Civil, Marcílio Laurentino.
É comum os acreanos verem notícias como essas nos jornais locais e também nacionais, os casos em muitos momentos são tão parecidos que podem até confundir quem acompanha. Essa afirmação é comprovada por meio de informações disponibilizados pelo delegado de Polícia Civil, responsável pela coleta de dados, Nilton Boscaro.
Em 2022, a quantidade de estupros de vulneráveis no Acre foi de 526 casos. Tendo em vista que o a capital tem a maior quantidade com 225, Cruzeiro do Sul somou 59 e em terceiro lugar veio Sena Madureira com 36 casos.

Entender os dados no Estado não é um caminho simples, pois existem diversos contextos que podem influenciam nesse cenário. A professora Drª. Madge Porto Cruz é líder do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos e Pesquisas Feministas em Saúde Mental, Cultura e Psicanálise da Universidade Federal do Acre (LabEFem – CFCH – Ufac) e atua nos temas da psicoterapia, supervisão clínica e institucional, Sistema Único de Saúde, saúde mental, saúde sexual e reprodutiva, violência contra as mulheres, abortamento e feminismos. Ela explica algumas questões que podem levar a esses números altos.
“Toda vez que tentamos entender um dado, milimetricamente, temos que entender como foi produzido. Uma taxa, frequência ou percentual, está influenciado na forma como foi criado. Sendo assim, precisamos analisar em duas perspectivas: diferenciando do geral e segundo, o próprio registro, nas bases que forem referência (delegacias). O fato é que para ter a informação é preciso do registro, então podemos pensar que há um maior registro porque há um entendimento maior de quem registra, seja o sistema de segurança ou saúde, como também há uma maior procura a esses serviços que fazem os registros”, explica a pesquisadora.

Ainda com base nas informações concedidas pela professora, as mulheres estão identificando mais os problemas, pois é necessário identificá-lo e dar nome a eles. Por isso, precisa ser percebido como uma violência e não algo natural.
“Países como o nosso, de referência patriarcal, escravistas, sexistas, algumas mulheres vivenciaram e vivenciam estupros e não conseguem perceber isso como violência. Então, preciso entender isso para que a gente possa fazer uma análise precisa, tentando fazer a leitura correta. A gente precisa dizer, há um maior número de estupros de vulnerável no Acre? Sim, mas a gente precisa considerar todas essas questões. Se eu acho que é importante, então o que pode levar o Acre a registrar esses números altos de estúpido é ter os estupros”, salienta Porto.
Estupro de vulnerável
A delegada titular da Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima (Decav), Carla Fabíola, explica que não é necessário que ocorra o ato sexual para que seja caracterizado o estupro de vulnerável, isso porque o crime consiste em acontecer uma conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos.
“Estupro de vulnerável está tipificado no artigo 217-A do Código Penal, e consiste em ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Ou seja, não é necessário que ocorra o ato sexual para que seja caracterizado o estupro. É importante salientar que mesmo que haja o consentimento da vítima ou até um relacionamento amoroso com o autor do fato, também irá configurar estupro de vulnerável”, detalha Fabíola.

A delegada explica que no Acre, assim como em todo o Brasil, ainda há a normalização de comportamentos machistas, que incitam crimes sexuais e agressões contra as mulheres. Além disso, ela destaca a culpabilização da vítima, pela roupa, pelo comportamento e até pela sua vida amorosa.
“Não apenas no Acre, mas em todo o Brasil, há a normalização de comportamentos machistas, que incitam crimes sexuais e várias outras agressões contra as mulheres. Ainda há a culpabilização da vítima, tentando justificar o crime cometido por conta da roupa que elas usam, pelo comportamento delas e até pela vida amorosa”, informa a titular da Decav.
O comparativo anual por mês dos casos de estupro de vulnerável no Acre, disponibilizado pela Polícia Civil, mostra a diferença entre 2022 e 2023. Em março do ano passado, mês com o maior registro de casos, por exemplo, foram constatadas 50 ocorrências. Já este ano, o mesmo mês registrou “apenas” 37.

Na delegacia especializada em atender crianças e adolescentes vítimas existe uma série de procedimentos que são seguidos, após um menor em situação de vulnerabilidade procurar denunciar um abuso. Carla Fabíola explica que, a princípio, a vítima menor deve estar acompanhada de um responsável e, então, um boletim de ocorrência é registrado.
“Ao chegar à delegacia, o menor, que deve vir acompanhada de um responsável, registrará o boletim de ocorrência. Esse B.O. é feito de forma sucinta, para evitar que a vítima detalhe várias vezes os fatos ocorridos. Após registrar o boletim, o responsável será ouvido através de depoimento. Em seguida, a vítima também é ouvida, mas em depoimento especial, por psicólogas da delegacia, onde há uma oitiva totalmente diferenciada e humanizada, para que a criança ou o adolescente não se revitimize, nem se constranja ao reviver os fatos”, esclarece.
Segundo a delegada, depois da oitiva, a vítima é encaminhada para realizar o exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML) para fazer os exames adequados para embasar a investigação. Em seguida, é feito a oitiva de testemunhas e, só então, o suspeito é interrogado.
Perfis
De maneira clara, Madge Porto afirma que o perfil da vítima é ser mulher. Segundo ela, a ideia de mulheres serem estupradas por estarem na rua ou com roupa curta, é uma falácia. Porto destaca que mulheres mais velhas também são estupradas.
“O perfil da vítima: ser mulher. A ideia de mulheres serem estupradas por estarem na rua ou com roupa curta, ser irresponsáveis, isso é uma falácia. Mulheres velhas também são estupradas. A roupa, idade e cor não protege e nem intensifica. O que dá esse “direito”, ou achar que é um direito ao homem, é o patriarcado”, esclarece Porto.
A pesquisadora lembra que as mulheres são, em sua maioria, violentadas com mais frequência dentro do ambiente familiar, mais precisamente em casa. Por isso, a maior parte são meninas e adolescentes. Os autores são pessoas próximas: pai, padrasto, tio, avô, professor, técnico. Porto afirma que é uma situação em que a mulher está vulnerável, quando ela deveria estar segura.
“Nem todo homem é estuprador, mas sempre é um homem. O perfil de uma masculinidade tóxica, que é aprender a ser homem, uma socialização do masculino apoiada na violência, que não chora e resolve as coisas na porrada sem poder expressar sentimentos. Todas as referências culturais fazem com que os homens estejam nesse lugar, por isso as mulheres têm muito medo. Não existe um perfil específico, o que existe é um sistema patriarcal”, diz a pesquisadora.
A delegada Carla Fabíola também tem uma visão similar quanto ao perfil dos autores. Segundo ela, os que cometem tais crimes bárbaros geralmente são parentes e pessoas próximas à vítima, como pais, padrastos, tios e vizinhos. Ou seja, pessoas do ciclo familiar, no qual as vítimas deveriam estar protegidas.
Ações de combate
A Secretaria de Estado da Mulher (Semulher) realiza um trabalho que envolve profissionais da Educação, Segurança Pública, Saúde, Justiça e Sociedade Civil, dos 22 municípios, para a orientação de ações conjuntas e de forma sigilosa, com o intuito de encaminhar denúncias de suspeitos de violência sexual, principalmente nas escolas e em unidades de saúde investigação policial.

De acordo com a secretária da Mulher, Márdhia El-Shawwa, a pasta também realiza o debate sobre a cultura do estupro, combatidas através da legislação vigente nas leis da importunação sexual e assédio sexual. Além de atuar na identificação de crimes sexuais no sistema de saúde e alertar profissionais.
“Trabalhamos também a identificação de crimes sexuais no sistema de saúde, alertando profissionais nos casos de adolescentes grávidas menores de 14 anos, considerada uma prova material do estupro de vulnerável que muitas vezes ocorre com consentimento da própria família”, salienta El-Shawwa.
Atualmente, o governo do Acre realiza o projeto ‘21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres’. A secretária conta que ações como essas evidenciam o problema e incentivam a população a denunciar, algo que aumenta as notificações nas Delegacias.
“No Acre, as mulheres estão denunciando essas violências. Os casos de estupro de vulnerável também estão vindo à tona, para serem notificados e investigados. Campanhas como os ‘21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres’ e do 18 de maio, Dia Nacional de Combate a Violência Sexual contra Crianças e Adolescente’, evidenciam o problema e incentivam a população a denunciar, aumentando as notificações nas Delegacias.

Queda
Apesar de ano passado ter registrado um número total de 526 casos, em dados cedidos ao site Agazeta.net pela PC/AC, até outubro de 2023 foram registradas 391 ocorrências de estrupo de vulnerável no Acre, uma queda de, até então, 34,5%. Mesmo com a falta dos meses de novembro e dezembro nos dados, o declínio representa um avanço no combate à violência no Estado.

Canais de ajuda
As mulheres vítimas de violência sexual podem buscar ajuda na Semulher, que possui uma equipe multidisciplinar, com psicóloga, advogada e assistente social para atender as vítimas de forma sigilosa, buscando fortalecê-las e dando-as os encaminhamentos para outros serviços que se fizerem necessários. Confira os canais:
Celular do plantão da Semulher – (68) 99605-0657;
Central de Atendimento à Mulher – 180;
Polícia Militar – 190;
Procurar as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e Delegacias Gerais de Polícia.