Quem nunca ouviu falar de uma pessoa branca que se passou por negra e/ou se apropriou da cultura de pretos e pardos para benefício próprio? Pois é, meus caros e minhas caras, isso é o que chamamos de afroconveniência. Mas o que seria essa coisa?
Antes de entendermos o que de fato é afroconveniência, precisamos levar em consideração dois termos: autodeclaração e heteroidentificação. A autodeclaração diz respeito a como cada pessoa se identifica, se percebe e se enxerga. A heteroidentificação, por sua vez, refere-se a como as outras pessoas nos leem, nos identificam e nos percebem. Eu, autora que vos escreve, por exemplo, sou uma mulher branca e cabelos loiros (embora tingidos de ruivos) e com essas características jamais seria lida socialmente como negra, ainda que me identificasse como tal – e de fato não sou. Se me autodeclarasse como parda ou preta para me promover, estaria, portanto, cometendo afroconveniência.
Agora voltando ao nosso questionamento central, em resumo, afroconveniência se trata da autodeclaração de má fé, feita por pessoas brancas, com o objetivo de obter algum tipo de “vantagem”. Esta conduta se apoia na relação de medo na projeção do branco sobre o negro e indígena. Esse medo nasce a partir do receio “daquele que o branco vê como sendo sua antítese o superar”¹, diante disso, este sujeito branco sempre buscará meios de se legitimar nos espaços, sejam eles de poder ou não, tendo como um de seus alicerces a afroconveniência.
Segundo Ana Paula Mendes de Miranda, Rolf Ribeiro de Souza e Rosiane Rodrigues de Almeida², afroconveniência se dá quando, de maneira fraudolenta, pessoas “se candidatam para vagas de negros (pretos e pardos), utilizando a política pública de ação afirmativa, mas que não são beneficiários legítimos de tal política.”.
Concordando com os autores citados anteriormente, Fábio Júnior Barbosa Antos e Jaciely Soares da Silva³ vão dizer que a afroconveniência é um “desvio de conduta e finalidade, quando pessoas se valem da subjetividade da autodeclaração para obter vantagens”.
É muito comum aparecerem notícias em nossas mídias de pessoas que entraram na justiça contra comissões de heteroidentificação que indeferiram a inscrição por autodeclaração não condizente à sua heteroidentificação, sob alegação de injustiça, já que se acham negros porque “a mãe ou o pai são negros” – o que é um grande equívoco, fruto do mito da democracia racial amplamente ensinado, já que ter parentes negros não te torna uma pessoa negra, a não ser que você herde os traços fenótipos (características físicas e palpáveis que podem ser observáveis) negróides (aspectos físicos predominantes e/ou relativos à população negra, como lábios, nariz e cabelos).
Nessa mesma linha de pensamento, as políticas públicas de Ações Afirmativas, materializadas nas subcotas raciais, por exemplo, têm como eixo norteador a inclusão de grupos minorizados e marginalizados aos espaços de emprego, saúde e educação. Aqui me refiro aos negros e indígenas, pois por mais de 300 anos de História do Brasil, foram colocados à margem da sociedade, tendo suas subjetividades e humanidades desapropriadas e exploradas pela branquitude.
Para além das fraudes nas cotas raciais, também podemos identificar a afroconveniência no sistema eleitoral. Em nosso aparato legislativo temos uma Emenda Constitucional de número 11 que firma o estabelecimento de alguns critérios para a distribuição de verbas para o Fundo Eleitoral. Esta ementa prevê determinado número de candidatos/as pertencentes aos grupos étnico-raciais distintos em cada partido como pré-requisito para o recebimento de dinheiro público. Por este motivo, muitas personalidades da política parlamentar adulteram suas autodeclarações para obtenção de recursos financeiros para seus coletivos.
Como muito bem destaca Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque4, ao exemplificar afroconveniência do ex-vice-presidente da república que se autodeclarou indígena, bem como o caso de um certo candidato ao governo da Bahia que se identificou como pardo desde as eleições de 2016 para ser eleito no estado que lidera o ranking de lugar com mais concentração de negros no Brasil.
A afroconveniência é uma estratégia usada pela branquitude para sua eterna permanência no poder. É uma potente ferramenta para a manutenção do racismo que mata e diariamente desfere golpes, por vezes silenciosos, contra indígenas e a população negra. Deve ser combatida com veemência e todo rigor da lei, para que assim possamos alcançar, ainda que gradualmente, uma sociedade com justa distribuição de oportunidades e com igualdade racial.
Referências:
[1] ALMEIDA, Geovanna Moraes de; ROCHA, Flávia Rodrigues Lima da. Rupturas nos paradigmas da branquitude: a atuação de pessoas brancas na luta antirracista do século XXI. Revista Em Favor De Igualdade Racial, 2023, V6, n1, pp. 28-41. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/RFIR/article/view/6505. Acesso em: 13 jul. 2023.
[2] MIRANDA, Ana Paula Mendes de; SOUZA, Rolf Ribeiro de; ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. “Eu escrevo o quê, professor (a)?”: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas. Revista De Antropologia, v. 63, n3, e178854, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/178854 Acesso em: 13 jul. 2023.
[3] ANTOS, Fábio Júnior Barbosa; SILVA, Jaciely Soares da. Equidade racial: reflexões sobre a afroconveniência e o sistema de cotas brasileiro. Revista Labor, v. 2, n. 26, pp. 197 – 219, jul./dez. 2021. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/labor/article/view/72170. Acesso em: 13 jul. 2023
[4] ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. Afroconveniência nas eleições 2022, uma das faces do Pacto da Branquitude. Revista Em Favor De Igualdade Racial, v.6, n.1, 2023, pp. 146–151 Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/RFIR/article/view/6560 Acesso em: 13 jul. 2023.
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Escrito por Geovanna Moraes de Almeida: Licenciada e bacharelanda em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre (PPGLI/Ufac). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac). Integrante da equipe editorial da Das Amazônias/Revista Discente de História da Universidade Federal do Acre (DAM/Ufac).