Como pai e professor, desenvolvi o hábito diário de dizer à minha filha, antes de ela ir para a escola: “Já sabe, coração: nada de levantar ou conversar sem necessidade. Atenção ao que a professora diz”. Qual não foi minha dor, nos últimos dias, ao ter que emendar o doce conselho de sempre com as seguintes palavras amargas: “Há uns boçais soltos por aí, enlouquecidos. Estão atacando as escolas, matando inocentes. Caso invadam sua escola, ouça e siga a professora. Procure um lugar seguro e se esconda. Proteja-se”.
No último texto (Educação sob ataque) que escrevi sobre o tema da violência contra os espaços educacionais, com o cuidado e a responsabilidade que a ciência exige, chamava a atenção para o fato de que “parecia” estarmos diante de uma “onda”. Não se completou uma semana de sua publicação e já outro caso, igualmente estarrecedor, ocorreu. Em Blumenau, um homem invadiu uma creche e matou quatro crianças, deixando outras tantas feridas.
Infelizmente, a hipótese do texto se mostrou correta. Pelos ataques ocorridos e pelos que foram frustrados, agora, já não há razão para usar a palavra “parece”. Estamos, de fato, diante de uma onda de violência contra os espaços educacionais.
Alguns se apressaram em dizer que o criminoso sofria um surto psicótico e/ou que havia cometido o ato em razão de um jogo. Eis algo curioso: esses alguns consideram que um jogo pode influenciar as pessoas a cometerem atos violentos, mas a massiva e cotidiana incitação ao ódio por parte de lideranças políticas não.
Arrostando tais alegações, compete indagar: por que, mais uma vez, atacar uma instituição educacional? Por que agora, hão tão pouco tempo de ouro ataque semelhante? A verdade é que o surto psicótico e o jogo referido podem até ser reais e relevantes, mas não são suficientes para explicar os fatos.

A quase simultaneidade dos ataques torna difícil – senão impossível – a sustentação de que tudo é uma infeliz coincidência, que os casos não guardam mais que conexões aparentes entre si. De outra banda, para além da proximidade temporal entre os ataques, há um vasto campo de intersecção entre os agentes desses crimes, coisas que lhes dão incontornável unidade. Esse é o caso do culto que prestam às armas, defendendo-as e exibindo-as como símbolos de status e poder. Ninguém pode glamourizar um símbolo de violência e morte sem que, no mesmo passo, glomourize a própria violência e a morte.
Mais que à vontade, esses indivíduos devem ter ficado muito excitados nos últimos anos, em que a defesa da violência e da morte se fortaleceu e passou a ocupar os espaços oficiais, invadindo-nos pelos olhos e pelos ouvidos ad nauseam. O solo era fértil e o clima, perfeito. Certamente, viram que era possível passar das imagens e das palavras à ação. E assim o fizeram.
A estatísticas não deixam margem a dúvidas. Segundo levantamento da Universidades Estadual de Campinas[1], de 2002 a abril de 2023, foram contados 24 ataques violentos a escolas no Brasil. Sintomaticamente, o levantamento mostra que 72% desses ataques se deram de 2017 para 2023[2]. Indicativo da intensificação do ritmo, somente de 2022 ao corrente ano, o número de ataques já supera o número dos que ocorreram nas duas últimas décadas[3].
Como ignorar o paralelo entre o aumento do número desses ataques e o fortalecimento da extrema direita entre nós? Não custa lembrar – e não há razão para se furtar à obrigação de dizer e repetir o óbvio – que esse grupo político, a um só tempo, vomita ódio, defende o armamentismo e ataca a educação.
Seria por mero acaso que, pelo menos, os responsáveis pelos ataques dos últimos anos exibiam símbolos fascistas e, ainda, estampavam em suas redes sociais fotos de líderes políticos da extrema direita? Outrossim, seria por mero acaso que alguns entre eles se apresentem como defensores de “Deus, pátria e família”[4], lema do fascismo e do neofascismo?
Que deus cuja sede pretendem aplacar com sangue de inocentes? Que pátria querem construir matando seus compatriotas? Que guerra eles acham que estão travando? Que família defendem matando jovens e crianças inocentes, desarmados? Mas não são exatamente eles que dizem querer defender as crianças? Como defender a vida, se o que fazem mesmo é promover a morte?
Além do vínculo ideológico com a extrema direita, do culto às armas, à violência e à morte, há ainda um elemento muito marcante a dar unidade a esses criminosos e que merece atenção. Trata-se do “traço cênico” que marca seu modus operandi. Ao lançar mão do termo “traço cênico”, quer-se destacar que eles pensam metodicamente seus atos – outra coisa, aliás, a tornar frágil a tese de surto[5] -, como quem prepara uma cena, um cenário, um espetáculo. Daí toda sua preocupação com os símbolos, os gestos e as palavras (escritas ou faladas).
Cada um age em um local. É óbvio. Mas todos eles almejam visibilidade o mais ampla possível, fama. Com a espetacularização da violência perpetrada, desejam a glória. Os assassinos querem-se heróis. Infelizmente, alguns assim os verão. Considerando esse intento, bem agiu a parte da imprensa brasileira que fez uma cobertura comedida, sem que isso significasse dar palco e holofotes a eles.
Depois do ocorrido, alguns parlamentares, nas mais diversas esferas, formularam algumas propostas a fim de lidar com o problema. São projetos muitos e variados[6]. Um defende PMs armados nas escolas[7]; outro, detector de metais[8]; e um terceiro, ainda, o uso de câmeras nesses espaços. Houve até quem propusesse, mais uma vez, a bizarrice de professores armados[9].
Não há como negar que algumas dessas propostas até podem ajudar no enfrentamento do problema. Todavia, em que pese a diversidade que apresentam, todas eles padecem do mesmo mal, qual seja, o de estarem voltadas para atacar os efeitos, e não a causa do problema. Podem, no fim, até mesmo fortalecê-lo e torná-lo ainda maior.
Abstraindo da anemia de que sofre o orçamento da educação, suponhamos um cenário em que as escolas todas tenham professores armados, vigilantes também armados (policiais ou não) e detectores de metais. Imaginemos ainda que todas as escolas tenham cercas eletrificadas. Isso resolve o problema de segurança?
É forçoso dizer que tal aparato não é, definitivamente, sinal de segurança, e sim de insegurança. Pois é isso o que de fato representa: insegurança, gritante insegurança. No melhor dos cenários assim desenhado, a escola seria, no máximo, uma ilha de segurança rodeada e continuamente assediada por um mar revolto de insegurança. Ou seja, ela jamais seria realmente segura. Por mais robustos que fossem seus diques, jamais poderiam conter a fúria das ondas externas.
A tomar a sério tais propostas, ao fim e ao cabo, terminaríamos por transformar nossas escolas em penitenciárias. Ademais, há aqui uma inversão. A escola não deve nem pode prover sua própria segurança. Antes, é o Estado e a sociedade que devem garantir a ela a segurança de que precisa para bem desempenhar suas funções. Nesse sentido, armar a escola para que ela mesma garanta sua segurança é uma proposta prima-irmã daquela outra que pressupõe que, se todos tiverem acesso às armas, todos estarão seguros. Maior que o erro, só mesmo o perigo que tais propostas implicam.
Importa nunca perder de vista esta verdade elementar e fundamental: a violência que, como uma onda, ora se levanta contra a escola, ameaçando engoli-la, não nasce em seu chão. Já sabemos que tal onda nasce na sociedade e, se quisermos atacar o problema em sua raiz, em suas causas, é, sobretudo, nesse terreno mais amplo que devemos atuar.
A essa altura, já deve ter ficado claro que o discurso de ódio só alimenta, justifica e incita a prática dos ataques aos espaços educacionais. Se é assim, o amor figura como instrumento indispensável em nossa luta pela paz, pela segurança. Paulo Freire costumava dizer que “Não se pode falar de educação sem amor” – e talvez, exatamente por isso, ele seja alvo de visceral ódio da extrema direita e dos que a ela se filiam ideologicamente, como os criminosos aqui em foco. Além de certeira, sua frase se mostra atualíssima, indispensável nesses dias (ainda) de ódio que atravessamos.
Coerente com o que foi defendido até aqui, às palavras de Freire, acrescento as palavras de Guimarães Rosa, outro mestre: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Atentos à beleza e à força das palavras de Guimarães Rosa, Lenine e Queiroga escreveram uma linda canção: Amor é pra quem ama. E é com seus versos que concluo esta reflexão sobre esse tema, ao que voltarei em breve:
“Qualquer amor já é
Um pouquinho de saúde
Um montão de claridade
Contribuição
Pra cura dos problemas da cidade
[…]
Luz do sol da noite escura […]
(Oswaldo Lenine Macedo Pimentel / Luiz De Franca Guilherme De Queiroga).
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[1] Brasil tem 24 ataques em escolas em duas décadas; relatório cobra políticas públicas | Educação | G1 (globo.com)
[2] Brasil vive alta de atentados em escolas e creches desde 2017 | Metrópoles (metropoles.com)
[3] Os dados que mostram explosão no número de ataques a escolas no Brasil – BBC News Brasil
[4] Esse era o lema do “Integralismo”, definido por pesquisadores diversos como um fascismo à brasileira.
[5] A propósito, após o ataque de Aracruz, seu autor foi para casa, guardou as armas, almoçou com os pais e, em seguida, foi para a casa de praia. Após matar quatro pessoas e deixar doze feridas, agiu como se nada tivesse ocorrido. É possível alegar, com algum razão, que ele estava em surto? Sobre o assunto, ver Polícia diz que após ataque em Aracruz, atirador guardou armas, almoçou e seguiu para casa de praia com os pais | Espírito Santo | G1 (globo.com).
[6] Guarda armada, câmera e detector de metal: projetos de lei querem reforçar segurança nas escolas – Rádio Guaíba (guaiba.com.br)
[7] Vice-líder de Tarcísio na Alesp, deputado do MBL protocola projeto para colocar PMs armados nas escolas em SP | São Paulo | G1 (globo.com)
[8] Deputado propõe detectores de metal em escolas para evitar entrada de armas (correiobraziliense.com.br)
[9] Mesmo que seja espaço de esclarecimento e cultura, a escola não está imune aos problemas que afligem à sociedade de que ela é apenas uma diminuta parte. Sem pretensão de exaurir o tema, basta lembrar do professor que, por duas vezes, foi flagrado elogiando Hitler em sala de aula. Ainda recentemente, outro professor foi flagrado defendendo o ataque ocorrido em Blumenau e completou: “mataria uns 15, 20, entrar com dois facões, um em cada mão e pá, passar correndo e acertando”. Permitir que pessoas com essa índole andem armadas em seu local de trabalho só piora o problema. Ou não? Sobre os casos, ver: Professor é afastado pela segunda vez após elogiar Hitler em SC (uol.com.br); Secretaria de SC apura denúncia sobre professor que apoiou ataque a creche (correiobraziliense.com.br)
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Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).