Debora Pazetto, doutora em filosofia, explica na sua pesquisa sobre o conceito de arte que tratando-se no sentido amplo, podemos considerá-la como uma “[…] experiência inovadora, criação, originalidade, de modo que qualquer setor das atividades humanas pode ter um núcleo reconhecido como artístico, desde que envolva um ato criativo potente ou uma experiência estética […]”. Portanto para além dos quadros expostos nos museus, teatros e galerias, a depender da intenção do homem (referindo-se a pessoas do sexo masculino e feminino) filmes, livros, jogos e quadrinhos também podem ser considerados arte.
Essas obras são desenhadas, ilustradas, gravadas, e seus enredos elaborados por seres humanos que possuem determinada intenção/objetivo com suas construções. Quem já não chorou assistindo um filme, série ou anime? Ou até jogando algum jogo cuja história lhe causou determinada familiaridade? A mesma situação ocorre com os mangás – histórias em quadrinhos do Japão – que são uma soma de elementos escritos e visuais distribuídos em quadros. Scott McCloud2, escritor estadunidense que já trabalhou em editoras de HQ’s, explica no seu livro em forma de quadrinho2 (de forma ampla, pois as particularidades de cada obra são determinadas por quem as cria) sobre como um(a) autor(a) de mangá produz a escrita e ilustração do mesmo.
Segundo o autor, para além de colocar suas experiências de vida e seu conhecimento naquele conteúdo, existe uma atenção dos mangás com a montagem das cenas, envolvendo técnicas narrativas de: personagens icônicos, maturidade genérica – referente a variedade de gêneros narrativos – forte senso de localidade espacial e temporal, designs de ambientes e seres vivos, movimento subjetivo, trechos sem diálogos (as vezes com onomatopeias), vários efeitos emocionais expressivos e valorização de coisas comuns do mundo real dentro dos quadrinhos, cuja intenção é proporcionar maior imersão/participação do leitor, em vez de apenas ser um espectador da história.
A partir dessa ideia, One Piece de Eiichiro Oda3, que segue sendo serializado pela revista Weekly Shonen Jump da editora Shueisha desde 1997, narra em mais de 1100 capítulos as aventuras do pirata Monkey D. Luffy e sua tripulação em busca do tesouro deixado pelo fora da lei Gol D. Roger. Ao longo da jornada Oda constrói no mangá cenas do seu protagonista interagindo com questões políticas, econômicas, sociais, culturais e históricas relacionadas ao mundo dessa obra que vão desde as viagens e explorações por diferentes ilhas à embates com lideranças autoritárias.
Interação essa possível de ser percebida pelos leitores por conta da dinâmica gráfico-visual construída pelo autor através da escrita (seja o texto, quanto as onomatopeias) e ilustração de ambientes, personagens, expressões, vestimentas, entre outros elementos. Posso citar como um exemplo o capítulo 1096 “Kumachi”, lançado em outubro de 2023.

Na página em questão, temos o ambiente em volta pegando fogo, sinalizando uma situação caótica, perigosa e de urgência, com a silhueta de um Gorousei – Jaygarcia Saturn – (uma figura de grande autoridade no mundo de One Piece. Representante do Governo Mundial) sendo destacada durante o diálogo. Em sua frente temos um garoto – Kuma – caído no chão que na cena seguinte por conta das feridas fica prostado diante dele.
Durante a conversa dos dois personagens é perceptível, visualmente falando, notar diferenças sociais, pois enquanto Saturn está vestido em trajes formais e com um sobretudo, Kuma possui vestes rasgadas. Para além das roupas, no quadro abaixo onde ambos estão de frente, o garoto segue curvado enquanto temos a figura do ancião em pé olhando com indiferença, sendo esse um reforço de Eiichiro Oda não apenas da hierarquia existente entre eles, mas também da afirmação feita na cena anterior em relação a condição de pessoa escravizada “determinada pelo curso da história”.
O jogo de elementos gráfico-visuais desse trecho proporciona uma imersão nessa cena. Temos os diálogos com afirmações e questionamentos tratando de temas que atravessam não apenas a obra, mas também o mundo real, a localidade ilustrada como uma cidade em chamas e a caracterização das expressões de sofrimento e indiferença das duas figuras que não possuem o mesmo status quo.
Contudo, esse tipo de construção não é algo recente no mangá de Oda. Em 2008, no capitulo 502 “O incidente com o Tenryuubitto” publicado no mês de junho, ele montou um quadro tendo seu protagonista envolvido na ação.

Ausente de diálogos, tendo apenas o balão do Tenryuubitto (nobreza no mundo de One Piece protegida pelo Governo Mundial) expressando dor e as onomatopeias de soco, Luffy agride publicamente o nobre em uma casa de leilão após o mesmo ter atirado contra o seu amigo – o tritão Hachi. Como é possível observar o golpe vêm de baixo para cima, pois o nobre estava no topo das escadas do salão enquanto o protagonista estava próximo ao palco. Remetendo por parte do personagem aversão a hierarquia política e social na qual ele está inserido, porque é considerado um tabu olhar ou falar com essa nobreza, quem dirá agredi-lo.
É interessante destacar que ambos os capítulos exemplificados (assim como toda a obra), apresentam as técnicas narrativas de mangás mencionadas por McCloud e a própria ideia de arte discutida pela professora Debora Pazetto na qual temos presente o ato criativo e a experiência estética. Em outros mangás como Naruto Shippuden, Jujutsu Kaisen, Fairy Tail, Demon Slayer e Dragon Ball esses elementos também estão presentes, porém trabalhados de distintas formas respeitando a inovação, originalidade e liberdade de criação dos autores.
Portanto arte também é escrever e ilustrar quadros que vão causar em nós (leitores assíduos ou não de quadrinhos japoneses) sensações de conforto, alegria, dor, familiaridade, tristeza, raiva, revolta e/ou identificação.
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[1] FERREIRA, Debora Pazetto. Investigações acerca do conceito de arte. Belo Horizonte, MG. 2014. 318f. Orientador: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-9RVFC9. Acesso em: 28 set. 2024.
[2] MCCLOUD, Scott. Desenhando Quadrinhos: Os segredos das narrativas de quadrinhos, mangás e graphic novels. São Paulo: Making Comics, 2008.
[3] ODA, Eiichiro. One Piece. Weekly Shonen Jump. Tóquio: Shueisha, 1997.
Texto escrito por Lucas Nascimento Assef de Carvalho – Bacharel em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Editor Técnico e de Indexação na Revista Discente de História da Ufac – Das Amazônias. Técnico em Segurança do Trabalho pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (Ifac).