Diz a verdade aquele que define os ataques a nosso sistema educacional[1] como “atos de violência”. Com isso, porém, diz apenas meia-verdade e pode, no fim das contas, mais complicar do que explicar. Isto porque, geralmente, esse tipo de definição tende a individualizar os atos, atribuindo-os a surtos e/ou perversões individuais.
Consideramos ponto pacífico que esses e outros fatores possam ajudar a explicar o fenômeno que hoje nos assusta, deitando luz sobre um ou outro caso. Todavia, as explicações que se alicerçam unicamente em fatores individuais como esses excluem ou ocultam os fundamentos sociais que animam e unificam esses atos. Por essa razão, advogamos que é mais preciso defini-los como “atos de violência política”
Entre outras coisas, o que nos leva a essa definição é a percepção de que, para os agentes desses atos, a violência, per si, não é o verdadeiro objetivo. A bem da verdade, ela é apenas um meio de que se valem para atingir um determinado fim.
Em contraste, os que têm na violência, tomada em si, seu verdadeiro objetivo não costumam expor seus planos. Muito menos nas redes sociais, tornando públicos local, data e hora. Ao contrário. Eles bem sabem que há muito mais chances de lograr êxito em seus intentos se os ocultarem de todos e principalmente de suas possíveis vítimas. Também não é de seu costume cobrir a violência que praticam com aura mística. E mais. Entre as razões que os animam, nada há que sirva de ponte entre eles e desconhecidos, situados em outras latitudes, permitindo que se crie uma espécie de rede entre eles.
Muito diverso é o fenômeno de violência que ora temos sob os olhos. Seus agentes atuam como em rede – mesmo que em uma rede informal e sem centro de comando – em que se irmanam e influenciam mutuamente. Fitando as coisas a partir desta ampla perspectiva, é mais que razoável dizer que há certo nível de coordenação entre eles, sem a qual não veríamos sincronia e confluência no que fazem.
É através dos ataques que perpetram que os indivíduos atestam seu pertencimento ao grupo e expressam comunhão de ideais e valores, que, por certo, requerem violência, mas – conditio sine qua non para um bom entendimento do tema – não qualquer violência, não de qualquer jeito. Almejam violência glamourizada, espetacularizada, algo lhes permita se sentir e se apresentar a seus consortes como “heróis” ou “mártires” – “kamikazes”, talvez – de uma grande causa comum.
Eis a razão para buscarem, inclusive de forma algo patética, visibilidade para seus atos de violência. Há que se sublinhar que não apenas os ataques realizados, mas até os ataques frustrados ou mesmo as simples ameaças, se geram pânico e lhes garantem visibilidade, já lhes servem. Por isso, as redes sociais são tão importantes para eles. Por também eles serem importantes para elas, pelo engajamento que geram, temos um infeliz e perigoso encontro, figurando a extrema direta como uma espécie de proxeneta de tão abjeta cópula.
Nos últimos anos, de ascensão da extrema direita em todo o globo e no Brasil, o que era do esgoto da política passou a reclamar não apenas o direito de existência, mas até o direito de ameaçar nossa existência. Analogamente ao que ocorre nas esferas mais tradicionais da política (eleições, partidos, parlamento etc.), também na internet o que era de seu submundo vem à superfície e apresenta-se desabridamente, orgulhosamente. Hoje as redes sociais são espelho e vitrine desses perigosos Narcisos, enamorados de si mesmos, onde eles se refletem e se expõem aos olhos dos outros.
Entre outras coisas, isso indica que os sujeitos desses atos se sentem suficientemente confiantes para assim se mostrar e agir. Os valores e os ideais que os encorajam e unem, a seu juízo, formam consenso, ponto de convergência relativamente sólido. Jamais fariam isso se não se sentissem amparados pelos discursos, práticas e espaços/estruturas das redes sociais e da extrema direita, à qual se filiam ideologicamente.
Anteriormente, vimos que alguns setores da imprensa brasileira decidiram fazer uma cobertura cautelosa dos atentados e evitar, ao máximo, dar visibilidade aos criminosos. Com parte da imprensa tradicional agindo assim, restou ao Ministério da Justiça marcar uma reunião com representantes das redes sociais, onde tudo corre mais solto. Entretanto, algumas se negaram a ajudar, arrolando dificuldades várias. Esse foi destacadamente o caso do Twitter[2].
Na reunião, a equipe do governo informou que várias postagens circulavam, estimulando atentados com fotos e vídeos. Em resposta, a representante do Twitter deu de ombros. Alegou que nada disso feria os termos de uso da plataforma e, assim sendo, não poderia tomar providências a respeito[3].
E desde quando os temos de uso estão acima de nossa Constituição? Desde quando os ditos termos estão acima da segurança e da vida dos indivíduos?
Como se fosse pouco, todos os que pediam informações sobre o assunto à plataforma passaram a receber um emoji de cocô como resposta[4]. Um país inteiro, agredido e aturdido, diante de avassaladora onda de violência contra seu sistema educacional, recebe um emoji de cocô. As vítimas – entre elas, crianças cujos corpos ainda nem bem esfriaram – recebem nada mais que um emoji de cocô do Twitter. Em termos coloquiais, porém muito precisos, isso significa que a plataforma e seu dono estão defec4ndo para o Brasil.
O TikTok não chegou a esse nível de desprezo, mas também não ajudou muito. Segundo a agência de checagem Aos fatos[5], a plataforma “permite trend que mistura K-pop e ameaças a escolas para viralizar”. Em seu levantamento, a citada agência “identificou 45 vídeos com lista de supostos alvos de ataques circulando na plataforma no dia 10 de abril, somando quase 5,6 milhões de visualizações”. Mesmo após várias denúncias, apenas 7 desses foram excluídos. Não se sabe se foram retirados por quem postou ou pela plataforma. Nada disso impediu que a trend tivesse um aumento de 50% de suas visualizações, chegando a 8,6 milhões.
Coisas como essas reforçam a necessidade de encararmos criticamente essas plataformas como o que de fato são, isto é, empresas de caráter colonialista (daí quererem submeter as Constituições dos diversos países a seus termos de uso) que visam primordialmente ao lucro. E se, porventura, a polêmica, a mentira e a violência lhes trouxerem o lucro, elas não pensarão duas vezes em acolhê-las e reproduzi-las. A liberdade político-moral que evocam é, na verdade, a liberdade de continuar lucrando sem serem incomodadas pelo que quer que seja.
Essa é uma das razões para a extrema direita se dar tão bem nas redes sociais – uma serve muito bem a outra e vice-versa. Seus preconceitos e frases de ódio se alastram como fogo em mato seco. Suas mentiras são explosivas. Ameaçam a democracia e viralizam. Ameaçam a vida e viralizam. Assim Trump, lá nos EUA. Assim Bolsonaro, aqui no Brasil.
De acordo com o site PolitiFact, “69% das declarações de Trump [enquanto presidente, foram] predominantemente falsas, falsas ou mentirosas”[6]. Embora tenha sido banido do Twitter por ter incitado ataques ao Capitólio, numa tentativa de golpe de Estado nos EUA, Elon Musk reativou sua conta após comprar a rede[7]. Por seu turno, conforme atesta o site Aos Fatos, Bolsonaro fez nada menos que 6.676 declarações falsas ou distorcidas ao longo de seus quatro anos de mandato, uma média de 4,58 por dia[8]. Nada que surpreenda vindo daquele que afirmou que “Fake news faz parte da nossa vida”[9].
Em linha de continuidade, pesquisa recente do Instituto Igarapé aponta que “32% do conteúdo monitorado na internet durante os meses de campanha eleitoral, em 2022, buscavam descredibilizar o sistema eleitoral”[10]. O levantamento Pulso da Desinformação destaca o protagonismo da extrema direita em mais esse ataque à democracia brasileira.
Inafastável, uma conclusão se impõe: as redes sociais são, também e essencialmente, redes antissociais. Se ecoam muitas vozes, nem todas elas são pacíficas e democráticas; se integram, integram conflitivamente. Se acolhem, acolhem manipulando e expondo a perigos muitos. Compreensivelmente, assumem um formato que fica entre o caos e o cenário definido por Thomas Hobbes como bellum omnium contra omnes (“guerra de todos contra todos”).
Tanto as redes sociais quanto os extremistas de direita costumam reivindicar a liberdade[11] para justificar suas ações. Declaram-se liberais. E, sob certo prisma, de fato o são. São liberais em uma das mais nefastas dimensões do liberalismo, aquela em que a liberdade de uns se afirma negando a liberdade de outros. E querem-nos tolerantes para com suas intolerâncias.
Ao dar a sua dominância o nome de liberdade, batizam feio rebento com bonito nome. Cônscios de que a linguagem toma parte nas relações de poder, para afirmá-las ou infirmá-las, importa que adjetivemos essas liberdades com precisão. Que ninguém se escandalize ou se confunda com o aparente paradoxo: são liberdades opressoras. Assim porque não são liberdades que regulem ou limitem as relações de domínio, como em tempos e circunstâncias, que já longe se vão, em que a burguesia agia de modo progressista e mesmo revolucionário, procurando conter os abusos por parte do Estado e da Igreja.
Em verdade, são liberdades funcionais às relações de domínio. Isto é, alimentam as relações de poder, ao mesmo tempo em que são por elas alimentadas. Ora, justamente por isso, esse tipo de liberdade se choca frontalmente com a democracia, sistema político-social que pressupõe igualdade entre os indivíduos e proteção a todos contra os abusos de poder.
Ao reivindicarem liberdade, redes sociais e extremistas de direita fazem lembrar pequena anedota que Marx conta sobre um ianque que visitava a Inglaterra. Na “terra da rainha”, foi impedido de açoitar seu escravo por um juiz. Indignado, o ianque gritou: “Dou you call a land of liberty, where a man can’t larrup his nigger?”[12] [A isso você chama de país livre, onde um homem não pode surrar seu próprio negro?]. No fundo, é esse tipo de liberdade que defendem. A liberdade do racista ser racista, do homofóbico ser homofóbico, do machista ser machista, do intolerante ser intolerante etc.
Sobre a violência que nos ameaça, Elon Musk (dono do Twitter) poderia usar a mesma frase que usou sobre o golpe de Estado que ele ajudou a dar na Bolívia: “Nós vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”[13], respondeu ele a um internauta que o indagou sobre o episódio.
Ontem, os golpeados foram os bolivianos. Tiveram seus votos cassados. Muitos aplaudiram. Afinal, era Evo Morales, um “esquerdista”, que havia sido derrubado. Hoje, os golpeados somos nós, brasileiros, incluindo nossos jovens e nossas crianças. Quem vai aplaudir? Quem vai chorar? E, principalmente, quem vai lutar contra isso?
——————————————————————————————————————– Israel Souza é professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
[1] Desde que começamos a tratar desse tema, temos insistido – a princípio, intuitivamente, por meio de hipótese – que não se tratava de ataques que, um tanto aleatoriamente, se voltavam contra escolas. Hoje, parece-nos inegável que é uma onda de violência que se levanta, premeditadamente, contra todo o sistema educacional brasileiro, pois que alveja instituições públicas e privadas, civis e cívico-militares, em todos os seus níveis (creches, ensinos fundamental, médio e superior).
[2] Twitter se nega a barrar conteúdo de apologia da violência – 11/04/2023 – Cotidiano – Folha (uol.com.br)
[3] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/04/twitter-se-recusa-a-tirar-do-ar-posts-com-apologia-a-violencia-nas-escolas-e-causa-mal-estar.shtml
[4] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/03/21/twitter-resposta-jornalistas.htm
[5] https://www.aosfatos.org/bipe/tiktok-trend-ameacas-a-escolas/
[6] D’ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news.
[7] Elon Musk reativa conta de Trump no Twitter após enquete com usuários | Mundo | G1 (globo.com)
[8] Ao longo de quatro anos, Bolsonaro mentiu 4,58 vezes por dia | Aos Fatos
[9] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/14/fake-news-faz-parte-da-nossa-vida-nao-precisamos-regular-diz-bolsonaro.htm
[10] Um terço de postagens buscava descredibilizar sistema eleitoral (correiobraziliense.com.br)
[11] https://veja.abril.com.br/tecnologia/sob-direcao-de-musk-twitter-enfrenta-dilemas-da-liberdade-de-expressao/
[12] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã.
[13] https://www.brasildefato.com.br/2020/07/25/vamos-dar-golpe-em-quem-quisermos-elon-musk-dono-da-tesla-sobre-a-bolivia