Fui assistir ao filme da Barbie. Sua repercussão foi – está sendo – estrondosa. Suscitou paixões e polêmicas às mais diversas. Dentro e fora do Brasil. À direita e à esquerda. Minha filha de oito manifestou interesse. E eu, porque pai e cientista social, não pude resistir. A bem da verdade, nem quis. Meu ofício e meus afetos falaram mais alto. Julguem-me, se quiserem.
Minha impressão? Calma lá. Já digo. Antes, devo dizer que, mais que sobre o filme da Barbie em si, esse é um texto sobre educação e questões sociais. Um pouco de contexto.
Entre os dois e os três anos, minha filha costumava assistir aos desenhos da Disney. A exemplo de muitas outras meninas desta idade, ela simplesmente amava aquelas princesas lindas; mulheres que, de tão delicadas, parecem feitas de nuvem ou de uma substância etérea qualquer.
A frequência com que ela assistia a esses desenhos ativou meu “sentido aranha” de pai. Fiquei preocupado. Lembro de dizer que, embora estivessem sempre bem arrumadas e sempre à espera de um príncipe que desse sentido a suas vidas, aquelas princesas também trabalhavam e estudavam. Princesas estudam, eu disse. Não aparece nos filmes. Mas que elas estudam, estudam. Todas elas. Branca de Neve, Bela Adormecida, Rapunzel… Todas.
Durante um tempo, ela só ouvia. Nada de resposta. Até que, em dado dia, retrucou. “Princesa não precisa trabalhar. Elas são princesas, papai”, respondeu, testa franzida. Num fôlego só. Frase curta e cortante. Fiquei sem jeito. E sem argumento e sem rumo também.
Assim fiquei por uns bons dias. Até que lembrei do desenho A bela e a fera, também da Disney. Talvez, fosse uma saída; uma alternativa era, com certeza. Quem conhece a estória deve lembrar que Bela é uma menina simples e amável, de povoado pequeno. Não obstante, apresenta porte de princesa; é linda, delicada e, não menos importante, gostava muito de ler.
Convidei minha filha para assistir comigo. Fui insistente. Disse muito bem da estória. Ela aceitou. Ah… Eu não via a hora de mostrar a ela as cenas em que a Bela lê. Queria ver a reação dela. Já na primeira cena em que Bela aparece com um livro nas mãos, eu disse: “Olha, coração. Ela tá lendo. Ela ama a leitura. Viu como as princesas também leem?”
A reação veio. E quem ficou mais surpreso fui eu mesmo. Ela disse, em tom um pouco incrédulo: “É mesmo, papai! Ela estuda. Parece até um homem…” Cacetada!!! Olhando um pro outro, a mãe dela e eu, ficamos atônitos, sem chão.
Atenção, leitor! Esse é o ponto central da reflexão que aqui segue. Tenho plena certeza de que ela não ouviu algo assim da boca de nenhum personagem de filme ou desenho a que ela tenha assistido. Tampouco ouviu de mim ou da mãe dela. Nem de algum de seus amiguinhos e de nossos parentes. E, no entanto, ela tinha opinião formada sobre o assunto.
De onde viera tal concepção? Eu respondo: da eloquente mudez das relações sociais que a rodeiam desde antes de seu nascimento, determinando seus horizontes e valores.
Senão vejamos. Ela tem um pai que trabalha numa instituição desempenhando atividades na área do ensino, da pesquisa e da extensão. Mesmo nos dias em que não estou em sala de aula, podendo ficar em casa, tenho que ocupar boa parte de meu tempo entre os livros e o computador – exatamente como agora, em que deito estas palavras aqui. Na visão de mundo que então ela tinha, fortemente ancorada numa experiência real, cotidiana, eu “estudava”.
Ao contrário do que alguns possam estar pensando, a mãe dela tem estudo. Fez graduação e pós-graduação. Entretanto, por termos mudado de cidade, ela teve que abdicar de trabalho e estudo, para cuidar de nossa filha e… da casa. Depois de muito refletir, decidimos isso de comum acordo, convencidos de que, não obstante um ou outro problema, seria melhor para nossa filha, para sua educação e segurança. Em cidade estranha, achamos por bem não deixá-la aos cuidados de estranhos.
Ironicamente, na visão de mundo que então ela tinha, fortemente ancorada na experiência real, cotidiana, a mãe dela “não estudava”. Um sinal de alerta havia sido acionado. As coisas estavam saindo ao avesso do que pretendíamos.
Embora ainda pequena, minha filha estava extraindo conclusões – conclusões assustadoramente límpidas e contundentes!!! – a partir das relações sociais em que ela estava inserida. Por ver a mim, seu pai, estudando, derivou daí que estudo é coisa de homem. Por outro lado e complementarmente, por ver sua mãe cuidando dela e das coisas de casa, concluiu que estudo não é coisa de mulher. Consequentemente, o estudo não seria coisa para ela.
Felizmente, o tempo foi passando. Ela começou a estudar e conheceu outros ambientes para além do de sua casa. Seu mundo ficou maior e mais complexo. Seus horizontes se ampliaram.
Nesse ínterim, juntos, assistimos a muitos outros filmes. Entre eles, Frozen e Moana (eu disse a ela que eu era o Maui rsrsr). Ah… e Shrek. Assistimos a Shrek também. Rimos muito com essas aventuras e choramos um pouco, algumas vezes. Em cada oportunidade que tive, mostrei-lhe a força das mulheres.
Chegados a este ponto, suponho que já deve ter ficado claro porque quis assistir ao filme da Barbie com ela. A Barbie (a boneca e o filme) tem lá os seus problemas, já bastante conhecidos e debatidos. Não quero agir como quem pretende reinventar a roda nem dar spoiler. A questão é que todos os problemas da Barbie – do filme e da boneca, insisto – são problemas da sociedade. E o bom educador é aquele que sabe tirar de todas as situações, as boas e as ruins, o ensinamento necessário. Assim procuro fazer.
Neste sentido, considero que Barbie enseja importantes lições. Apresentar aquele diverso mundo de mulheres – gordas, magras, negras, asiáticas, trans etc. – é uma destas lições. Gosto de pensar que minha filha há de crescer sabendo que o mundo não é um espelho seu e que diversidade não é sinônimo de inferioridade.
Outro ponto digno de nota é que o filme mostra as muitas profissões que as mulheres podem exercer, de gari a presidente. Mas isso não depende só de “vocação” ou querer. Depende também de luta, de disputa por espaço e reconhecimento. E isso não se resolve com frases de feito ou autoajuda, tais como “Nunca desista de seus sonhos”, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá…
Bem sei que, se enquadrado pela perspectiva liberal, pequeno-burguesa, isso pode significar uma cilada, como a luta por identitarismo separado e/ou contraposto às questões de classe. Entretanto, seria um absurdo esperar que um filme da Barbie não trouxesse consigo seus limites e perigos. Desse modo, argumento que o problema não é do filme em si, e sim daqueles que espera(va)m dele algo além do que ele pode oferecer de fato.
Não poderia deixar de dizer que, apesar dos pesares, o filme vem sofrendo ataques e boicotes por parte dos conservadores-reacionários e do “movimento red pill”. Como sabemos, esses sujeitos pretendem reverter as conquistas que custaram séculos de lutas às mulheres.
Os conservadores-reacionários já são bastante conhecidos. Dispensam apresentação. Os red pill, porém, são relativamente novos na cena. Permitam-me defini-los. São homens ressentidos, inseguros e cognitivamente limitados. Quando os vemos falar, somos invadidos por sensações ambíguas, como a vontade de rir e vomitar ao mesmo tempo. No entanto, tiveram a sorte de encontrar outros homens – que são ressentidos e inseguros como eles, porém ainda mais limitados cognitivamente do que eles – e conseguiram convencê-los de que são o suprassumo da masculinidade, autênticos representantes de uma virilidade alfa(fa).
Atribuem todos os seus fracassos e frustrações às mulheres. Donde seus esforços para transformá-las em seus bichinhos de estimação, desses que deitam e rolam a um simples comando de seus donos. Sim. São seres baixos. E, por isso, só podem ficar por cima ao custo de rebaixarem as mulheres. Essa é a obsessão deles: reduzir as mulheres a nada, a fim de que, desse modo e somente desse modo, (eles) possam parecer alguma coisa.
Embora façam de tudo para ocultar suas fragilidades, elas são facilmente percebidas. Queriam-se Rambo; He-man, talvez. Mas – Santa patetice, Batman! – os machões todos tremeram por causa do filme de uma boneca. Scooby-Doo e Salsicha são mais corajosos que eles todos e o Pink e o Cérebro, muito mais sagazes.
O filme Barbie tem inegáveis limites. Há que se considerar, porém, o seguinte: se mesmo com esses limites, ele tem sofrido tantos ataques, isso é sinal de que mais limitados ainda estão se tornando nossos horizontes.
Certa feita, Marx disse que “as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino”. Complementava afirmando que “O progresso social pode ser medido exatamente pela posição social do belo sexo”. De fato, não pode haver progresso social se este se fizer às expensas das mulheres, se não for extensivo a elas.
Assisti ao filme da Barbie com minha filha não para que ela quisesse ser menos ou igual à Barbie, mas para que ela queira ser mais, que ela saiba que pode ser mais. Educo-a para que, assim como a Barbie no filme, ela não se deixe aprisionar numa “caixinha” qualquer… Educo-a para a liberdade. Educo-a para que saiba exigir respeito e dignidade se, porventura, alguém lhe negar respeito e dignidade. Educo-a para o amor. Em resumo, talho-a para ser senhora de si, escrava de ninguém.
De resto, os homens que lutem para conquistá-la e merecê-la.
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Israel Souza é professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).