Conforme as investigações avançam, somos assombrados pelo volume de denúncias e indícios de crimes atribuídos a Bolsonaro e a alguns de seus seguidores. Em face de tudo quanto veio à tona nos últimos dias – e de modo geral, desde que Bolsonaro saiu da presidência -, muitas questões foram suscitadas, algumas de grande pertinência.
De modo um tanto sumário, nas linhas que seguem, gostaria de tratar de uma dessas questões, sempre procurando dar relevo a suas implicações para a democracia. Trata-se da relação de Bolsonaro com o exército.
Um analista sagaz, conhecedor do meio militar, disse que Bolsonaro, em seu governo, se “vingou” do exército. Como o exército quase o expulsou, Bolsonaro, na condição de presidente e “chefe supremo do exército”, deu-lhe um bom castigo, submetendo-o a suas patetices e arroubos autoritários.
A análise tem lá sua razão e solidez. Contudo, parece-me que ela padece dos males do simplismo e do unilateralismo. Ora, a relação de Bolsonaro com o exército é muito mais complexa do que ela supõe. Diga-se, em primeiro lugar, que Bolsonaro jamais teria chegado à presidência sem o apoio de expressivos setores dos militares, alguns de alta patente. Ele mesmo reconheceu em público, em mais de uma ocasião.
Do mesmo modo, diante de tantos desmandos que protagonizou, ele jamais teria concluído seu mandato sem o apoio dos homens de farda. Por isso, toda vez que se sentia encurralado, ele vinha a público ameaçar as instituições e seus opositores com “seu” exército. Porque o “MEU exército isso”, o “MEU exército aquilo”, dizia sempre de boca cheia nessas ocasiões. E mesmo diante de tantas ameaças, escancaradas, não ouvimos uma única voz se levantar entre os militares e reverberar contra isso. Nem mesmo quando ele exonerou, de uma única vez, os comandantes das três forças.
Acrescentemos, ainda, o fato de que o desapreço pela democracia e a sanha golpista que lhe é peculiar não são coisas que Bolsonaro cultivara, sozinho, do nada. Em verdade, isso faz parte de sua formação militar. Ainda hoje, há militares que tratam o golpe civil-militar de 1964 como “revolução”, e não como o que de fato ele é, ou seja, UM GOLPE.
E foi exatamente por isso ainda fazer parte da visão histórica e dos valores de significativos setores militares que José Múcio (atual Ministro da Defesa) teve que acertar com os chefes das Forças Armadas para, nesse ano, não haver nenhuma comemoração (!!!) sobre aquele nefasto período. A necessidade de, ainda hoje, ser necessário fazer um acordo para que isso não seja celebrado mostra o tamanho do problema, do perigo sempre à espreita.
Ante esses e outros fatos, a conclusão que se impõe é que Bolsonaro não se vingou dos militares durante seu governo, como dissera o analista. A bem da verdade, Bolsonaro se juntou com vários militares com quem comunga valores antidemocráticos para, juntos, se vingarem da democracia. Eles não se sentem bem em ambiente democrático.
O atual comandante do exército disse para que tomássemos o cuidado de não confundir a instituição militar com as pessoas. Decerto, não se pode afirmar que o exército estava com Bolsonaro, apoiando-o em tudo quanto ele propunha. Não estava. Tanto assim, que Bolsonaro, Braga Neto e Augusto Heleno se ressentiram disso e passaram a atacar os que não aderiram ao intento do golpe.
Todavia, não se pode separar assim, fácil e completamente, as instituições das pessoas. As instituições são formadas por pessoas e, por outro lado, também as formam. Ademais, por tudo o que veio a público até agora – e há muito ainda por vir -, sabemos que setores inteiros das Forças Armadas somaram esforços para levar o golpismo adiante. E nessas fileiras golpistas também constavam gente graúda na hierarquia militar, valendo-se de suas muitas estrelas e autoridade.
Dessa forma, se é certo que o exército (o que se estende às outras forças armadas) não tem toda a responsabilidade pelo golpismo de Bolsonaro, é igualmente certo que não está totalmente isento dela.
A nosso juízo, é sintomático da problemática relação do exército com a democracia o fato de, em vez de expulsar Bolsonaro de seus quadros, tê-lo apenas colocado na reserva. Entre outras coisas, podemos inferir daí que a instituição compreende que ele foi digno da farda e pode ostentar, onde quer que seja, para quem quer que seja, as credenciais de militar. O cordão umbilical, que não fora cortado lá atrás, agora virou teia, atando e confundindo criador e criatura.
Se estão dispostos a reconhecer a verdade factual de que, não fosse Bolsonaro, o exército não teria agido como agiu, devem estar igualmente dispostos a reconhecer esta outra verdade, também ela factual: não fosse o exército, com seu autoritarismo e seu histórico de golpes e tentativas de golpes, Bolsonaro não seria quem é, e, por consequência, não teria agido como agiu e age.