Marc Bloch, historiador medievalista francês, no seu livro Apologia da História explica que nosso oficio, a pesquisa, é semelhante ao de um ogro – criatura fantasiosa conhecida pela força bruta e por devorar humanos – farejando/caçando carne humana, porque segundo ele trabalhar nessa área é, e deve ser, sobre o ser humano, pois de acordo com o mesmo: “a própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda […] o objeto da história é, por natureza o homem, digamos melhor: os homens” 1 (quando o autor fala de “homens”, está referindo-se a pessoas do sexo masculino e feminino). Mas o que isso tem a ver com jogos, mangás e animes? Todos eles são desenhados, ilustrados e seus enredos são criados por seres humanos.
E justamente durante o processo criativo, dando como exemplo a construção de personagens, cenários, histórias para diferentes acontecimentos, que a experiência de vida dos produtores ou autores, além de suas interações com a sociedade, política, economia e cultura seja ela nacional ou internacional, da mesma forma que um simbionte se unindo no hospedeiro, criam raízes com suas produções.
Scott McCloud2, um escritor dos Estados Unidos da América, o qual trabalhou durante um tempo de sua vida nas editoras de histórias em quadrinhos, explica no seu livro em forma de HQ – História em Quadrinho – que quando um autor de mangá escreve e ilustra um personagem e sua história, ele está colocando suas experiências de vida e seu conhecimento naquele conteúdo, o que causa em nós leitores essa sensação de conforto, alegria, dor, proximidade, tristeza, semelhança e inclusive raiva. O mesmo pensamento aplica-se na elaboração dos jogos, por exemplo quem acompanhou o streamer Alanzoka jogando Life is Strange em 2015 no seu canal do Youtube, sabe o quanto ele chorou com a história e o desenrolar dela, e isso aconteceu porque os homens responsáveis por desenvolver o enredo desse jogo buscaram colocar situações que gerassem essa familiaridade com o público.
Pensando nosso Brasil, na década de 90 temos uma grande difusão de animes, mangás e jogos. Editora Conrad, antiga rede Manchete, filial da empresa Nintendo eram algumas das fontes de acesso a cultural japonesa. Já na cidade de Rio Branco essa presença oriental, ganha espaço e cenário entre o público infantil e jovem através do evento AnimeAC que reunia os apreciadores desse conteúdo, atualmente a Associação dos Nerds do Acre (ANAC) é a responsável por dar continuidade ao movimento. Nesse período vale destacar que quanto aos videogames, os cenários eram a maior manifestação histórica e também cultural não somente do Japão, mas de outras nações, como por exemplo Super Bomberman 1 e seus prédios estilizados no mapa semelhante a ideia de um Estados Unidos Futurístico/Avançado.
O avanço da internet abriu caminhos para um maior alcance desse conteúdo devido a sites, muitos deles criados por fãs, nos quais podemos desde assistir online um anime, a ler o capítulo do mangá, e dependendo de onde procurar, até mesmo baixar o emulador de algum console. Considerando também o crescimento do desenvolvimento tecnológico ilustradores e escritores ampliaram seu leque de opções, juntando o XP deles com o conhecimento histórico de um evento ou povo, assim a história passou a ter mais presença dentro desse mundo além do que somente na ambientação. Quem lembra de Assassin’s Creed: Unity na qual os assassinos do credo marcam forte presença durante os acontecimentos da Revolução Francesa?!
Seguindo a ideia dos exemplos comentados, José D’Assunção Barros3 afirma em um dos seus livros que “Iniciar uma Pesquisa, em qualquer campo do conhecimento humano, é partir para uma viagem instigante e desafiadora”, a qual você não precisa estar limitado a um tipo de tema, apenas considerar que, história é tudo aquilo a partir da ação dos homens, conforme diz Bloch alguns parágrafos a cima.
Se o historiador decidi encarnar o ogro farejando carne humana, uma vez tendo as fontes para viabilizar sua pesquisa, ele pode falar de One Piece4 e suas manifestações de resistência as lideranças autoritárias partindo do conflito explicito entre Exército Revolucionário e Governo Mundial trabalhado tanto no mangá, quanto anime, estabelecendo um paralelo com as revoluções sejam elas brasileiras quanto europeias. Utilizar da história de personagem do campeão Darius, Mão de Noxus do jogo League of Legends5, para analisar a política imperialista da nação noxiana e como ela interfere diretamente na construção social desse povo fazendo uma analogia aos Estados-Nação do século XIX.
Os clássicos Sakura Card’s Captors6 e Sailor Moon7 como instrumento de pesquisa do protagonismo feminino em obras japonesas que estão retratando a sociedade ocidental, onde garotas adolescentes e jovens são responsáveis por resolver problemas mágicos e disputas com deidades, em um cenário na qual elas não podem contar com ajuda de adultos. Por fim Fullmetal Alchemist8, com ênfase na política armamentista do país militar Amestris, possibilitando uma discussão sobre nações bélicas, a própria tensão da guerra fria envolvendo armas nucleares, que relacionando com a obra seria equivalente aos alquimistas federais.
Além dessas possibilidades mencionadas os jogos da saga Assassin’s Creed trabalham diferentes tempos históricos, e alguns deles especificamente mitologia como é o caso do Valhala e Origins. Os mangás/animes de Shingeki no Kyojin, Vagabond, Gângster, Rainbow entre outros também são bons caminhos para viajar em busca de política, problemas sociais, ambientação histórica, conflitos armados e elementos culturais. Isso considerando apenas o caminho da pesquisa dos bacharéis, enquanto que para os licenciados na área o ensino de História em sala de aula pode se tornar mais dinâmico e interativo ao relacioná-lo com temas/assuntos que geraram familiarização com os alunos sejam eles do ensino básico, médio ou superior devido a facilidade que esse conteúdo chega em suas mãos através de telefones, computadores e demais dispositivos eletrônicos.
Portanto agucem seus sentidos e saiam para caçar, pois existem muitos jogos, animes e mangás aguardando serem estudados, analisados e principalmente caminhos para novas possibilidades seja no ensino de história, quanto na pesquisa acadêmica.
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[1] BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história: O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[2] MCLCOUD, Scott. Desenhando Quadrinhos: Os segredos das narrativas de quadrinhos, mangás e graphic novels. São Paulo: Making Comics, 2008.
[3] BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História – Da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. 236p. Disponível em: https://ria.ufrn.br/jspui/handle/123456789/1146. Acesso em: 16 set. 2023.
[4] ODA, Eichiro. One Piece. Weekly Shonen Jump. Tóquio: Shueisha, 1997.
[5] INC, Riot Games. League of Legends: Darius, a Mão de Noxus. Los Angeles, 2009. Disponível em: https://www.leagueoflegends.com/pt-br/champions/darius/. Acesso em: 16 set. 2023.
[6] CLAMP. Sakura Card Captors. Nakayoshi. Tóquio: Kodansha, 1996.
[7] TAKEUCHI, Naoko. Sailor Moon. Nakayoshi. Tóquio: Kodansha, 1992.
[8] ARAKAWA, Hiromu. Fullmetal Alchemist. Monthly Shōnen Gangan. Tóquio: Square Enix, 2001.
Texto escrito por Lucas Nascimento Assef de Carvalho – Bacharelando em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Editor Técnico e de Indexação na Revista Discente de História da Ufac – Das Amazônias. Técnico em Segurança do Trabalho pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (Ifac).