Foto: BrasildeFato
No universo da política, toda crise é marcada por uma reacomodação das forças em disputa, em maior ou menor medida. E a verdade é que não há crise que seja boa para todos os indivíduos nela envolvidos, sejam estes pessoas, grupos, partidos etc. Alguns perdem. Outros ganham.
Em razão disso, podemos dizer que toda crise assume a forma de uma espécie de antropofagia política. Os mais fortes e espertos tendem a se alimentar dos mais fracos e desatentos. E, onde não encontrarem resistência suficientemente forte, crescem.
O ano de 2013 é um claro exemplo do que estamos falando. As manifestações de junho daquele ano, que levaram milhões de pessoas às ruas, em diversos estados da federação, representaram sinais de fraqueza da parte das forças petistas, que eram governo àquela época. Aproveitando a oportunidade, a nova direita – escancaradamente antidemocrática – ganhou protagonismo, enfraquecendo, no mesmo processo, todas as forças democráticas, e não apenas as forças petistas.
Somado ao antipetismo da Operação lava-jato – com seus abusos e crimes, muitos já devidamente documentados e comprovados – e da grande mídia, isso levou a uma apertada vitória de Dilma sobre Aécio Neves. Percebendo o momento como propício, setores antidemocráticos do Legislativo – com anuência do Judiciário. Nunca esqueçamos disso! – votaram e aprovaram seu impedimento. Acuado pela Justiça, de um lado, e movido por um forte sentimento de vendetta, de outro, Eduardo Cunha desferiu o golpe, sem nem ponderar sobre o que isso significaria para a democracia brasileira.
Temer assumiu a presidência sem legitimidade e sem apoio popular. Débil assim e acossado por várias denúncias de corrupção, coube ao Legislativo a tarefa de segurá-lo no cargo. Desse modo, o poder que julgou e condenou Dilma com base em absolutamente nada que se justificasse, segurou e blindou Temer, em detrimento de tudo o que pesava contra ele.
Como é de se supor, nada disso era caridade. Tinha lá seu preço. E o Legislativo o cobrou ininterruptamente, inflacionando muitos vezes seu valor. Robusteceu-se. Enfraquecido, o Executivo quedou-se refém.
Com o voluntarismo e o autoritarismo que lhe são peculiar, Bolsonaro tentou mudar os termos dessa relação. Até porque se elegeu dizendo-se “contra tudo isso que está aí”. Principalmente, dizendo-se contra o centrão, grupo político de que fez parte por longos anos. Em face de seus desmandos e de inúmeras denúncias de crime, avolumaram-se pedidos de impedimento contra ele. Mais de uma centena.
Temendo perder o mandato e parar na cadeia, Bolsonaro rendeu-se ao Legislativo. Mais precisamente, rendeu-se ao centrão, a que já havia negado mais de três vezes antes de o galo cantar.
Interessa lembrar que, a princípio, Bolsonaro quis parecer o presidente mais forte e autônomo que o Brasil já teve. Arrotou macheza sem conta. No final, tudo bravata. Com seu aval, o centrão passou a ter um poder sem paralelo no Legislativo. E mais. Sob seu governo, o centrão passou a exercer, inclusive, funções próprias do Executivo. Entre outras coisas, foi isso o que significou o tal do “orçamento secreto”. Milhões a serem gastos sem critérios precisos nem transparência. A corrupção agradece…
Aquele que queria parecer o presidente mais forte e autônomo de nossa história foi, em verdade, o mais pusilânime. Se bem que é preciso dizer que tal não foi apenas coisa de fraqueza política. Isso contou. Mas não foi tudo. Foi, ainda, uma inocultável inclinação de Bolsonaro. Como dissemos alhures, ele sempre quis o poder de presidente, mas nunca, nunca quis a responsabilidade de presidente. Com efeito, sempre lhe apeteceu bem mais coisas como passear, ostentar com cartão corporativo, fazer motociatas e tentar se apropriar de joias de milionário valor.
Juntaram-se, enfim, a fome com a vontade de comer. Anabolizado, o Legislativo ocupou o vácuo e, através do centrão, passou a exercer também poderes exclusivos do Executivo. Apequenando-se este, agigantou-se aquele. Como numa gangorra, enquanto um subia, outro descia. Evidentemente, dentro do parlamento, o maior beneficiado foi o centrão.
Para Bolsonaro, que não tinha projeto de governo[i] nem queria de fato governar, pouco importava, desde que continuasse na presidência e estivesse seguro de que não ia pagar por seus crimes.
A rigor, é a esse poder que o centrão foi acumulando ao longo dos últimos dois governos (pusilânimes!!!) que Lira chama de “protagonismo”. Segundo ele, Lula deveria respeitar esse protagonismo. Entretanto, agora, o cenário é bem outro.
Por tudo o que sabemos – e por tudo o que ainda está sendo descoberto – a respeito do abuso da máquina pública por parte de Bolsonaro, para tentar se reeleger, o quase-empate entre ele e Lula foi apenas aparente. Para bem entender isso, não devemos confundir, ingênua e indevidamente, votos com força política. Decerto que, num “sistema democrático” como o nosso, a força política muito depende dos votos, mas nem sempre uma coisa se deixa tomar pela outra.
Melhor explicando: boa parte dos votos que Bolsonaro angariou nas últimas eleições não era apoio de fato, e sim fruto da compra de votos com verba pública, o que foi feito, entre outras coisas, através de programas sociais e diversas formas de empréstimo. Levada a cabo por órgãos de controle, a conta desse abuso já chega à casa dos bilhões, impactando fortemente mesmo um banco sólido como a Caixa Econômica Federal. Se fôssemos descontar do cômputo geral das eleições os votos “conquistados” com essas práticas criminosas, Bolsonaro teria sofrido uma derrota esmagadora.
Diferentemente dos governos imediatamente anteriores, o forte dos governos petistas está nas políticas de inclusão social, voltadas para as frações de mais baixa renda da população. E, conforme apontam as mais diversas pesquisas, essa é a base de apoio de Lula.
Querendo repetir o que fizera em seus dois primeiros mandatos, quem sabe até ir além e fazer mais, o atual presidente não pode abrir mão de propor políticas e de governar. Por seu projeto, por sua personalidade, e mesmo por uma questão de sobrevivência política sua e de seu grupo, ele não pode nem deve aceitar a passividade de Temer e de Bolsonaro.
E isso o coloca em rota de colisão com uma das legislaturas mais reacionárias de nossa história, um legislatura capitaneada pelas bancadas da bala, da bíblia e da boi, frações visceralmente refratárias à democracia. De outra banda, depois de ter crescido tanto e se fortalecido nos governos anteriores, o Legislativo não vai querer largar o osso de bom grado agora. Vai lutar com todas as forças para não perder as prerrogativas de que se apropriou nos últimos anos.
Eis a razão por que, agora, já não basta aos partidos “ganharem” ministérios no governo. No Parlamento, isso já não garante votos favoráveis às matérias de interesse do governo. Além dos ministérios, os partidos querem a liberação de emendas polpudas a cada votação importante. Ou seja, o governo conta com uma base em que muitos são instáveis. Parece não haver acordo que não tenha que ser renovado, via liberação de emendas, a cada votação.
Como deve ter ficado claro nas votações mais recentes, esse não é um problema que afete apenas o governo. Questões como o meio ambiente[ii] e a inclusão social[iii], além de outras tantas de igual importância, podem ser prejudicadas desde que tal sirva para chantagear o Executivo, forçando-o a ceder à insaciável fome do Legislativo. Submetem nossos direitos, nossas vidas a seu fisiologismo e a seus interesses particulares. Sem o menor disfarce.
Prezemos pela clareza. O problema não é que o Legislativo se negue a votar as matérias do governo. É seu constitucional papel abrir discussão sobre tudo quanto chegue em suas casas (Câmara dos deputados e Senado Federal), aquilatando prós e contra. A questão é que, pelo que estamos assistindo, ele está emperrando pautas populares (que atendem à população), ou mesmo as sabota, movido por nada além de interesses mesquinhos e antidemocráticos.
Teoricamente, o Legislativo é definido como a “casa do povo”, um símbolo ou a encarnação da democracia. Em face dessa realidade, porém, devemos nos perguntar: casa de que “povo”? Que democracia ele representa nesse momento?
O fato de mesmo os governistas temerem que Lira aja agora com Lula como, antes, Cunha agira com Dilma diz muito sobre o quanto que a atual hipertrofia do Legislativo trouxe consigo, como reverso de uma medalha, a atrofia de nossa democracia. É preciso muita atenção e articulação para que nossa República democrática não deixe de ser o que é, com todos os seus defeitos e limitações que bem sabemos que tem, e passe a ser algo bem pior, isto é, um sistema em que presidencialismo vigora no campo do direito ao lado de um parlamentarismo que vigora no campo dos fatos.
No momento, avançam investigações sobre casos de corrupção que diretamente implicam Lira. As coisas hão de melhorar, uma vez que ele vai ficar temeroso e ocupado em se defender?
Francamente, temos cá nossas dúvidas. Animal acuado tende a ficar mais feroz. Importa não esquecer: exatamente quando estava mais acossado pela Justiça, foi quando Cunha desferiu o golpe contra Dilma e, por consequência, contra nossa democracia. Lira é um Cunha anabolizado. Logo… todo cuidado é pouco…
[i] Acrescento que “destruir” o que está posto – o que ele disse que ia fazer – não pode ser considerado projeto de governo.
[ii] Ao aprovarem o marco temporal (matéria inconstitucional, frise-se), os deputados prejudicaram, de uma só vez, os povos originários e o meio ambiente, liberando vastas extensões de terra para a exploração de garimpo, por exemplo.
[iii] O relator da matéria que “redesenhava” os ministérios no governo Lula, avançando em prerrogativas exclusivas do Executivo, resolveu por conta própria enfraquecer uns ministérios – aqueles de que não gostava – e fortalecer outros – aqueles que lhe interessavam.