Começou o julgamento dos responsáveis pelos atentados golpistas do 08 de janeiro. Como defensor da democracia, julgo que não poderia ter começado de melhor maneira. No plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o primeiro réu foi condenado a mais de 17 anos de prisão; os outros que se seguiram tiveram sorte quase igual.
Espalhafatosos, cômicos e perigosos até, os advogados dos réus chamaram muita atenção. Um, pretendendo exibir erudição, confundiu O pequeno príncipe (de Antoine de Saint-Exupéry) com O príncipe (de Maquiavel). Como se diz em linguagem coloquial, que ratada! Outro resolveu dizer aos ministros que eles são odiados. Outra, ainda, apostou no melodrama e chorou.
Em verdade, parece que queriam apenas aproveitar a audiência para fazer política. Impropérios pra lá; impropérios pra cá. Todos, em alguma medida, reproduziram os discursos de ódio típicos de certos guetos bolsonaristas, repletos de clichês. Não defenderam seus clientes. Defenderam o golpe. Se agem assim, mesmo tendo fracassado, faz tremer a simples cogitação de como agiriam se o golpe tivesse prosperado.
Do outro lado, entre os ministros, houve dissenso, como era de se esperar. Coube a Nunes Marques e a André Mendonça o papel de ponto fora da curva, com contorcionismos jurídicos e malabarismos verbais de fazer corar. Corretamente, Alexandre de Moraes percebeu que a descrição que Nunes Marques fazia do 08 de janeiro sugeria que ele falava não de uma tentativa de golpe, e sim de um piquenique ou de um passeio num parque.
Por seu turno, uma das intervenções de André Mendonça chamou a atenção porque o núcleo de seu argumento deve ter sido tirado dos grupos de “zap” do bolsonarismo. Ele fez eco às insinuações de que o governo federal foi negligente e, seja como for, contribuiu para a invasão aos prédios dos Três Poderes.
A coisa é pobre e terrificante. Por esta natureza sua, faz lembrar a situação de algumas mulheres que, tendo sido estuprada ou objeto de tentativa de estupro, deparam com perguntas sobre que roupas usavam no momento, se não haviam, de alguma maneira, encorajado os criminosos… Ou seja, trata-se daquele tipo de argumentação que coloca sobre a vítima a responsabilidade pelo que crime que contra ela foi cometido.
Nu fundo, o pomo da discórdia – entre ministros e, ainda, entre defesa dos réus e ministros – foi o crime de tentativa de golpe. Embora distintos, os argumentos em contrário são aparentados e igualmente frágeis. Dizem que não houve golpe (tautologia!); que não houve atuação dos militares, os únicos que, supostamente, poderiam dar um golpe; que houve vandalismo, sim, mas não a intenção de golpe etc., etc., etc.
Já tratei disso em outra ocasião. Mas cumpre reiterar brevemente alguns dos pontos fundamentais do fenômeno. Não há uma “fórmula” de golpe de Estado válida para todo tempo e lugar. A forma que este assume depende das condições conjunturais e dos sujeitos envolvidos. Sendo assim, embora seja comum o envolvimento de militares, eles podem ou não tomar parte na empreitada.
De mais a mais, o golpe de Estado não é ato. É processo. Tem etapas, como as de concepção, planejamento e execução. O conjunto de tudo isso implica que nem sempre as tentativas de golpe são exitosas, podendo, por vezes, ficar apenas na condição de meras tentativas.
Pretendendo se livrar das implicações penais de um golpe de Estado, bolsonaristas dizem que o golpe não ocorreu. Quando muito, dizem que foram apenas tentativas. Não tendo ocorrido o golpe, tudo ficando apenas na condição de tentativa, argumentam que não há razão para apenar os envolvidos quanto a isso.
Impõe-se dizer que os golpistas só estão sendo julgados hoje porque fracassaram. Se tivessem obtido êxito em seus intentos, não haveria tribunal que lhes pudesse julgar. Eles é que estariam na condição de julgadores, apenando os defensores da democracia a torto e a direito. Neste caso, os criminosos seriam os juízes e os juízes, os criminosos. Reis, os primeiros – porque com poderes todos, absolutos; réus, os segundos – porque sem poder ou direito nenhum.
É por isso que, neste momento, se julga a tentativa de golpe, e não o golpe em si. E isso, é forçoso que se diga, não diminui em nada a importância do julgamento. Devemos ter presente que não se julga apenas o homicídio, mas também a tentativa de homicídio. Em ambos os casos, a pena aplicada deve servir para que o condenado pague pelo erro e, por outro lado, seja pedagógica no sentido de que ele não reincida. Deve servir também para que outros, vendo o resultado do julgamento, temam ter o mesmo destino e se abstenham de cometer crimes.
Dessa maneira, o julgamento deve ser exemplar e a pena, justa. Ou seja, para crime grave, pena igualmente grave, dura mesmo. Ora, se se pune de maneira dura aquele que tenta assassinar uma pessoa, por uma questão de proporcionalidade, muito mais duramente deve ser punido aquele ou aqueles que tentarem assassinar um regime (o democrático) e jogar a sociedade no caos.
Caso o STF não proceda assim, dará sinais favoráveis àqueles de índole golpista e autoritária. Como lembramos, e convém nunca esquecer disso!, da última vez que estes prevaleceram entre nós, entramos numa noite autoritária que nos tomou mais de duas décadas e custou umas centenas de vidas. Ainda hoje podemos dizer com Belchior: “Na parede da memória, esta lembrança é o quadro que dói mais”.
Não é desarrazoado dizer que foi a anistia – com que colocamos “termo” naquele período trevoso – que, além de deixar livres torturadores e assassinos, manteve vivo o espírito saudosista dos tempos ditatoriais. Para dizer de outro modo: a anistia não só não fez justiça e não resolveu aquele trauma como permitiu que seus fantasmas se mantivessem livres e serelepes por aí, voltando agora para nos assombrar.
O clima de golpe dos últimos sete anos é tributário direto do golpe de 1964. Comprovam-no alguns personagens, suas palavras de ordem. Entre outras coisas, isso implica que o que for feito agora dos atos golpistas do 08 de janeiro há de repercutir, para o bem e para o mal, no presente e no futuro, mas também o passado estará implicado.
Caso seja feita justiça agora, nosso passado, pelo menos em parte, pode ser redimido. Em termos simbólicos, quando se punem os golpistas de hoje, por seu intermédio, punem-se também os golpistas de 1964. É hora de exorcizar esses fantasmas de uma vez por todas.
Reafirmo que acho que o julgamento começou bem. Espero que prossiga assim, mantendo a mesma dureza com os financiadores, incitadores e mentores da tentativa de golpe. Sem anistia. Só assim poderemos dizer que terminará bem.
Devo ser franco. A defesa da democracia – e é isso o que está em questão aqui – não é indolor. Tem seus custos. Quem acha, porém, que a defesa da democracia custa muito não tem ideia do quanto custa a perda da democracia.
Não esqueçamos do golpe de 2016 aplicado em Dilma. Este foi exitoso e já, à época, contou com a participação de militares entusiastas do golpe de 64.
Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
[1] Não esqueçamos do golpe de 2016 aplicado em Dilma. Este foi exitoso e já, à época, contou com a participação de militares entusiastas do golpe de 64.