Hora da merenda! Na mata densa do Alto Rio Juruá, uma iniciativa começa no solo e termina nos pratos das crianças da região. A cada manhã, agricultores familiares colhem da terra, produzem e carregam alimentos frescos até escolas locais, atravessando rios e estradas de terra batida. Esses produtos, colhidos ou criados nas comunidades, transformam não apenas a alimentação escolar, mas também a vida de centenas de famílias. De modo geral, essas escolas se alimentam da própria terra que as cercam.
O projeto Agricultura Familiar na Alimentação Escolar, coordenado pelo promotor do Ministério Público do Acre Leonardo Honorato, busca integrar alimentos regionais e saudáveis ao cardápio das escolas, enquanto fortalece a produção local e valoriza culturas tradicionais.
Criado em 2020, a ideia conecta a produção local diretamente à merenda escolar de cinco municípios, sendo eles Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Rodrigues Alves, Marechal Thaumaturgo e Porto Walter. “Essa iniciativa do Ministério Público se iniciou justamente neste trabalho de acompanhamento da política pública de educação aqui nos municípios do Juruá.”, afirma Honorato.

O objetivo vai além do horário do recreio, trata-se de uma política pública que busca solucionar questões de logística e resgatar os sabores e saberes da Amazônia, a fim de substituir produtos industrializados e valorizar a sociobiodiversidade da região. A ideia nasceu de constatações preocupantes. O desafio do transporte para fornecer merenda de qualidade a escolas em áreas remotas e a dificuldade dos agricultores familiares em comercializar os produtos.
“São dois problemas que necessitavam ser resolvidos. Primeiro, é a dificuldade logística que as prefeituras, através das secretarias de educação, têm em entregar a alimentação escolar de qualidade para as escolas mais distantes dos centros urbanos. Por outro lado, os agricultores também têm problemas com a venda da produção.”, lembra Honorato.
A solução? Inverter a lógica. Agora, os alimentos frescos produzidos na região chegam diretamente às escolas, reduzindo custos e melhorando a qualidade das refeições. “Além disso, o agricultor do entorno da escola, que muitas vezes é pai ou mãe dos alunos, tem a produção valorizada.”, destaca o coordenador.
Ainda assim, os desafios persistem. Cardápios precisam ser ajustados à sazonalidade, e os agricultores, capacitados para atender às exigências do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Possibilitadores: papel das gestões municipais
“Essa é uma política pública interinstitucional, que precisa de muitos atores da administração pública envolvidos. O Ministério Público apenas articulou esses órgãos e instituições para que a política pública fosse aplicada de forma adaptada à realidade local.”, explica o promotor.
Parte do sucesso do projeto se deve à colaboração das prefeituras, por meio das secretarias de educação, como nos municípios de Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo e Porto Walter. O secretário municipal de Educação de Mâncio Lima, Júnior Pinho, relata como o programa foi ampliado para comunidades ribeirinhas.
“Inicialmente realizamos reuniões nas comunidades para divulgar a importância do programa. As primeiras impressões foram de que seria possível implementá-lo devido à adesão dos agricultores. Hoje, vemos os impactos visíveis na alimentação dos alunos e na vida dos agricultores, que agora têm autonomia financeira e incentivo para ampliar a produção.”, explica.
A gestão municipal, segundo Pinho, tem garantido suporte logístico e pessoal para o fortalecimento do programa. O secretário afirma que estão ampliando o número de agricultores familiares e diversificando o cardápio com frutas e verduras locais, oferecendo uma alimentação mais saudável para os alunos.
Em Marechal Thaumaturgo, o secretário de Educação, Eclinio Furtado, destaca o pioneirismo do município no cumprimento da Lei 11.947/2009, que determina o investimento de pelo menos 30% do repasse do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) em produtos da agricultura familiar.
Furtado enfatiza que a parceria com a Secretaria de Agricultura e cooperativas locais tem sido essencial. “Hoje somos modelo a ser seguido. Além de oferecer alimentos de qualidade, o projeto fomenta a produção local, respeitando a cultura e as tradições da nossa gente.”, afirma.

Porto Walter também colhe frutos significativos. O secretário de Educação, Ericson Araújo da Costa, ressalta a importância do município na organização de cooperativas e núcleos nas comunidades rurais. “A compra de alimentos da agricultura familiar fortalece a segurança alimentar e respeita a cultura local, enquanto promove o desenvolvimento sustentável e hábitos alimentares saudáveis.”
Com 120 agricultores participantes na última chamada pública, o município tem expandido significativamente a produção local. “Os agricultores estão cada vez mais motivados. A agricultura familiar fornece alimentos frescos e diversificados para as escolas, contribuindo para a gratidão das famílias e o fortalecimento das comunidades.”, celebra Araújo.
Do açaí à galinha caipira: cardápio regional e nutritivo
Essa proximidade e entusiasmo é o coração do projeto. O cardápio escolar agora inclui farinha artesanal, açaí, galinha caipira e porco criado solto, sabores que fazem parte da memória cultural das comunidades. Para as crianças, são mais do que refeições; são lições de pertencimento.
Implementar uma iniciativa dessa magnitude não é tarefa fácil. O projeto exige além da articulação entre prefeituras, secretarias e apoio técnico para os agricultores, também tem como base o trabalho de importantes profissionais: os nutricionistas.
Daiane Rocha, nutricionista responsável pela alimentação escolar em Mâncio Lima, compartilhou a experiência: “O programa era implementado na zona urbana e rural terrestre, mas, com o apoio do coordenador Leonardo Honorato e do Ministério Público, conseguimos expandir para a zona rural ribeirinha. Reuniões nas comunidades ajudaram a divulgar a importância do projeto, algo que antes não conseguíamos concretizar.”, explica Rocha.
Ao abordar os desafios de criar cardápios mais tradicionais e saudáveis, ela afirmou que o diálogo com os produtores locais foi essencial. “Fizemos um levantamento dos alimentos disponíveis e, a partir disso, elaboramos cardápios alinhados às ofertas da região.”, destaca.
Além disso, a iniciativa está gerando um impacto socioeconômico expressivo. Segundo Rocha, o número de produtores participantes cresceu de 9 para 17 em 2024. Ela afirma que o projeto cumpre a legislação, melhora a qualidade da alimentação escolar e incentiva a produção local, fortalecendo a economia.

A nutricionista responsável pelo município de Rodrigues Alves, Neiviane Andrade, relata satisfação em ver o projeto atendendo às exigências do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “A maior realização foi finalmente ver o PNAE acontecer da maneira que deve ser. O maior desafio foi fazer os agricultores acreditarem no projeto, com sua mão de obra e seus produtos cultivados aqui.”
Já Edilamar Rumão Marques, responsável pela elaboração dos cardápios de Cruzeiro do Sul, descreveu a inovação do projeto como uma oportunidade de ousar: “Além de melhorar a qualidade nutricional dos alunos, tivemos até concursos de receitas feitas pelas merendeiras com produtos da agricultura familiar, o que superou nossas expectativas.”
No entanto, convencer agricultores, diretores escolares e merendeiras a adotarem o novo modelo foi um obstáculo inicial. “Foi preciso mostrar que, apesar do custo um pouco maior, a qualidade da alimentação resultaria em melhor desempenho escolar. Para as merendeiras, cozinhar mais e desembalar menos foi um aprendizado que elas levaram para as próprias casas.”, conta Marques.
Embora o projeto ainda enfrente dificuldades para incluir produtos como açaí e galinha caipira em larga escala, as mudanças são perceptíveis. Esses alimentos, quando utilizados, são fontes ricas em nutrientes essenciais. Eles representam a cultura local e tornam a alimentação mais saudável.

Mais do que refeições nutritivas, o projeto está plantando sementes para o futuro. “Ele valoriza a cultura local e reduz o consumo de ultraprocessados, conscientizando as crianças sobre a importância de uma alimentação sustentável.”, conclui Marques.
Universalização: planos futuros e conquistas
O impacto é visível. Em 2024, praticamente todas as escolas urbanas dos cinco municípios foram atendidas, e a cobertura rural foi ampliada. “A zona urbana de todos os municípios está totalmente atendida, e a zona rural, especialmente as áreas ribeirinhas, teve grande avanço em 2024.”, afirma Honorato. Para o promotor, no entanto, o futuro reserva ainda mais.
“Essa política pública tem como meta a universalização. O objetivo é atender 100% das escolas com alimentos frescos e regionais.”, afirma. Nos próximos anos, a expectativa é que cada refeição escolar seja não apenas uma fonte de nutrição, mas um reflexo da riqueza cultural e natural do Alto Juruá.
Outra evidência da importância do projeto é o reconhecimento nacional. A prática Agricultura Familiar na Alimentação Escolar foi selecionada como finalista da 21ª edição do Prêmio Innovare, que busca identificar, divulgar e promover iniciativas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil.

Enquanto isso, nos campos e nas escolas, agricultores e crianças colhem os frutos dessa iniciativa. “Essa prática de inversão da logística, onde os agricultores entregam diretamente às escolas, é inovadora no Brasil. Essa articulação é um exemplo de como políticas públicas podem ser adaptadas às realidades locais e ter sucesso.”, celebra o promotor, olhando para o futuro.
A iniciativa, que alia saúde, economia e tradição, mostra como a união entre educação e agricultura familiar beneficia não apenas os alunos, mas toda a sociedade. Com isso, no denso solo do Alto Juruá, iniciativas como esta tem o poder de germinar sementes que perdurarão além do horário da merenda.