Nos últimos dias, mais uma vez, a educação esteve no centro do debate político. Correspondendo a episódios distintos, as discussões giraram em torno de dois eixos, aparentemente antitéticas: “doutrinação” e “disciplina”.
No primeiro desses episódios, dando provas do vigor de seu preconceito de sempre – ou seria de seu ódio? -, Eduardo Bolsonaro comparou os professores a traficantes e sequestradores. Mais precisamente, ele afirmou que os professores são “piores que os traficantes”. Isto porque, segundo alega, os professores colocam seu ofício de educador a serviço da “doutrinação” e sequestram os filhos de seus pais.
Impossível deixar de observar que, no atual contexto de ataques às escolas e aos educadores, as palavras de Eduardo Bolsonaro podem soar como um chamado à violência, impedindo que demarquemos, sem margem a dúvidas, a fronteira entre a irresponsabilidade e a maldade por parte do deputado. Afinal, como deveriam agir os pais que soubessem que seus filhos estão sendo educados por pessoas ainda “piores que traficantes”? Se os pais amam seus filhos, e o perigo que estes correm é assim, gigantesco e diabólico, quem haveria de culpá-los caso venham a usar de violência física contra os professores, os “sequestradores” de seus filhos?
Temos a mais absoluta certeza de que nenhuma das questões acima é despropositada. Em um evento pró-armas, ele falava a um grupo de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), pessoas muito afagadas durante o governo de seu pai e, certamente em razão disso, muito ativas nos atos terroristas[ii] que se deram após a conclusão do pleito presidencial do ano passado.
Alguém pode dizer que as coisas não são bem assim; que Eduardo Bolsonaro fazia referência aos “professores doutrinadores”, e não a todos os professores. Em verdade, ele afirma categoricamente que os “professores doutrinadores” são piores do que os traficantes porque “enxergam opressão em todo o tipo de relações”. Em suas próprias palavras:
Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante que tenta sequestrar e levar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior, porque ele vai causar discórdia dentro da sua casa, enxergando a opressão em todo o tipo de relação. Fala que o pai oprime a mãe, a mãe oprime o filho e aquela instituição chamada família tem que ser destruída[iii].
Suas afirmações são ricas em implicações. Não temos tempo nem espaço para uma exegese completa de todas elas. Assim sendo, trataremos de apenas alguns pontos, os que consideramos mais relevantes.
Ainda que de passagem, vale registrar que faz décadas o país vem vivendo sob polarização política. De tal sorte que, em dado momento, houve mesmo que defendesse que PT e PSDB pareciam expressar por essas latitudes aquilo que Republicanos e Democratas representam nos EUA, dado que diversas eleições foram decididas entre eles. Todavia, nada nessa disputa lembrava – nem mesmo de longe – aquilo que se configurou com a formação e o fortalecimento do bolsonarismo.
A polarização trazida pelo bolsonarismo é radicalizada, conformando uma espécie de espiral de ódio e violência. Amizades foram desfeitas, famílias foram divididas, vidas foram tiradas, tentativas de golpe de Estado foram postas em marcha. Não foram os “professores doutrinadores” que criaram essas discórdias e divisões. Ao contrário. Foi o grupo que os acusa disso que criou.
Salta aos olhos a centralidade da tal “doutrinação” nas acusações dirigidas contra os professores. Mas o que isso significa eles nunca explicam a contento. E é aí que uma deficiência do ponto de vista científico – a imprecisão ou indefinição do que vem a ser “doutrinação” – acaba por se transformar numa vantagem do ponto de vista político. Já que não há definição precisa, tudo pode caber na caixinha da “doutrinação”, mudando conforme as circunstâncias e o sabor do cliente. Dessa maneira, por trás desta fluidez do sentido de “doutrinação”, vigora, intransigente, o açoite político que ameaça e fere, num mesmo movimento, os professores e a ciência.
Bem sabemos que o universo científico, para o bem e para mal, não é unívoco. Há dissensos. Entretanto, de acordo com a maior parte dos cientistas, a solidez de uma democracia depende do combate às desigualdades de classes, de gênero e “raça”, entre outras. Outrossim, a maior parte dos cientistas advoga a urgência de se cuidar das questões ambientais, a fim de garantir a manutenção das condições da vida no planeta.
Pela ótica bolsonarista, tudo isso seria doutrinação pelo simples fato de tratar de questões que eles ignoram ou negam. Todos os professores seriam doutrinadores, passíveis de serem tratados como piores que traficantes, tão somente por lidarem com questões exigidas por suas disciplinas.
Sim. Para os bolsonaristas, desnudar, refletir e denunciar as relações de exploração e opressão seria… opressão… Aqueles que ignoram a opressão fariam o certo. Não seriam opressivos. Aqueles que denunciam a opressão fariam o errado. Seriam doutrinadores, opressivos. Avesso do avesso!
Emblemático dos perigos que esse modo de proceder suscita foi o episódio em que um professor foi agredido por ter repreendido um aluno que fez saudação nazista. Em resposta, o pai do aluno agrediu o professor[iv]. Nas mãos dos que assim pensam e agem, o certo vira errado e o errado vira certo. Avesso do avesso! Mau é o que educa. Bom é o que deseduca.
O julgamento que fazem da atuação dos professores não é epistêmico, isto é, não é científico. Tampouco é pedagógico. Em verdade, é um julgamento essencialmente político-partidário. Pouco importa se a atuação dos professores está de acordo com a área científica a que pertencem. Se não estiver de acordo com os valores políticos desse grupo, então estão errados e merecem ser atacados moral e fisicamente.
Coincidência perigosa é que esse grupo reivindica como liberdade o direito de desinformar, mentir e até agredir, enquanto, por outro lado, procura impedir que os professores cumpram bem seu ofício em sala, negando-lhes o mais elementar direito/dever de ensinar.
O segundo episódio que colocou a educação no centro do debate deixa ainda mais evidente o caráter político-partidário das discussões. Trata-se do encerramento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Os bolsonaristas não gostaram da decisão e esbravejaram, como esperado.
O primeiro ponto a destacar é que não deixa de desconcertar ver esse grupo se preocupar e sair em defesa da educação. Mas não da educação em geral, claro. Eles saíram em defesa de um tipo de escola muito vinculado a Bolsonaro e diretamente ligado aos militares.
Ninguém ouviu essas vozes reverberarem em defesa da educação quando Bolsonaro vetou, integralmente, o projeto que assegurava internet grátis a professores e alunos das escolas públicas[v]. O projeto teria, no mínimo, diminuído os impactos da pandemia sobre o aprendizado dos estudantes pobres. Ainda da parte desse grupo, o silêncio prevaleceu quando Bolsonaro vetou a recomposição da verba destinada à merenda escolar. Já fazia 7 anos que o valor do Programa Nacional de Alimentação Escolar não era recomposto. Em algumas escolas, maiormente naquelas de estados e cidades mais pobres, a merenda era suco e bolacha[vi]. E como é difícil, senão impossível, alimentar o espírito quando o corpo é que grita por alimento.
Há que se dizer ainda que, toda vez que havia cortes orçamentários no governo anterior, a educação (juntamente com ciência e tecnologia) era a área mais afetada – isso, sem contar os contingenciamentos[vii]. As universidades e os institutos federais estiveram na iminência de fechar suas portas[viii].
Nada disso, porém, que afetou milhares de escolas e milhões de estudantes despertou a indignação dos que hoje vociferam contra o encerramento do Pecim. Segundo dados do MEC, há apenas 200 escolas cívico-militares em todo o território nacional, representando nada mais que 0,1% do total de escolas existentes[ix].
Então por qual motivos os bolsonaristas se preocupariam tanto com essas poucas escolas e ignorariam todas as calamidades que se abatiam sobre toda a educação no governo anterior?
A resposta é bem simples. Como no episódio primeiro, também neste segundo a questão é fundamentalmente política. Eles alegam que não; que defendem as escolas cívico-militares por sua qualidade de ensino. E o segredo, afirmam, estaria na “disciplina”. Como haveria disciplina (ordem e respeito) nessas escolas, os alunos aprenderiam melhor.
A bem da verdade, até onde sabemos, não há nenhum estudo sério que defenda que apenas a “disciplina” seja responsável por um melhor aprendizado. Por outro lado, há que se dizer o óbvio, toda escola tem sua disciplina. Umas com mais e outras com menos rigor, mas todas elas com disciplina. Além do mais, os defensores das escolas cívico-militares, convenientemente, ignoram questões estruturais de grande relevância como: a melhor estrutura de que elas têm, o melhor salário dos professores e, não menos importante, o fato de que aí o gasto por aluno é três vezes maior do que nas escolas civis[x].
De outra banda, chama a atenção o fato de que aqueles que prezam pelo respeito e pela ordem nessas escolas são os mesmos que insuflam a indisciplina e o desrespeito nas outras. Alguém imagina Eduardo Bolsonaro definindo os professores das escolas cívico-militares como “sequestradores” e “piores que traficantes”? Imagino que não. Porque é um tipo de escola em que a educação, de caráter mais conservador, representa bem seus valores morais e políticos. Nada mais.
Isso é prova cabal de que, a despeito do que pretendem fazer parecer, “disciplina” não é o contrário de “doutrinação”. Não. É exatamente o contrário. Expliquemos.
Há muito mais diversidade nas escolas civis, sendo impossível a qualquer grupo monopolizar as visões de mundo que aí se fazem presentes. De igual modo, há muito mais liberdade nas escolas civis do que nas escolas cívico-militares. Nas escolas civis, mesmo adotando fardas, os estudantes gozam de muito mais liberdade de como se vestirem e paramentarem. Daí a diversidade em seus corpos, com brincos, tatuagens, cortes de cabelo, adereços etc.
Essa mesma liberdade refletida em seus corpos tem lugar nas salas de aula, na relação com os professores, sendo parte essencial do processo de aprendizado. Em razão dos parâmetros pedagógicos que seguem, as escolas civis devem encorajar o pensamento livre e, portanto, os questionamentos dos estudantes. Acreditamos que só assim eles serão capazes de desenvolver um espírito crítico e autônomo. Num ambiente assim, diverso e livre, tudo aponta na direção oposta do que vem a ser doutrinação.
Doutrinação mesmo, no sentido de um conjunto de regras e/ou princípio que estão a serviço da homogeneização forçada de gostos e comportamentos, corpos e mentes, viceja, sobretudo, nos ambientes em que a disciplina é inimiga da liberdade e os indivíduos, a exemplo das mercadorias, são produzidos em série.
Bem. Mas aí, nesse caso, já não estaríamos falando de sujeitos, e sim de objetos, coisas. Já não falaríamos de educação, e sim de adestramento.
[i] Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
[ii] https://www.ocafezinho.com/2023/07/16/cacs-armados-se-articularam-nos-atos-terroristas-apos-derrota-de-bolsonaro/
[iii] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/eduardo-bolsonaro-compara-professores-a-traficantes-pf-deve-analisar-fala/
[iv] https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/professor-e-agredido-por-pai-de-aluno-no-parana-apos-repreender-gesto-nazista1
[v] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/19/bolsonaro-veta-integralmente-projeto-que-assegura-internet-gratis-a-alunos-e-professores-da-rede-publica.ghtml
[vi] https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2022/09/11/bolacha-e-suco-sem-reajuste-ha-5-anos-merenda-se-torna-lanche-em-escolas.htm
[vii] https://olb.org.br/os-cortes-na-educacao-no-atual-governo/
[viii] https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/noticia/2022/08/cortes-deixam-17-universidades-federais-sob-risco-de-parar-em-2022.ghtml
[ix] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/07/14/interna_politica,1520204/lula-sobre-escolas-civico-militares-se-cada-estado-quiser-criar-crie.shtml
[x] Estudantes de colégios militares custam três vezes mais ao País – Estadão (estadao.com.br)