Entendo o conceito de ancestralidade como uma busca e afirmação das raízes culturais e familiares que remetem a valorização da história de um povo e/ou família. Como mulher negra penso o conceito também conectado à ideia de poder e resistência, carregado de símbolos e lembranças. Além disso, em minha percepção nossa ideia de poder está intimamente ligada a nossa compreensão política do mundo, ou seja, pensamos poder e ao mesmo tempo pensamos cargos, força e influência.
Se fizermos um pequeno esforço após um entendimento mais ampliado da sociedade, podemos refletir sobre poder de outras diversas formas, como por exemplo, o ato de não deixar-se calado/a. Que nos leva a pensar o instinto de resistência presente na maioria de nós, e aqui no Brasil, muito vivo na população negra. Para comprovar isso, preciso contar um pouco da importância de uma rainha quilombola pouco reconhecida pela sociedade brasileira, mas com um peso muito grande para a construção da ancestralidade, poder e resistência de mulheres negras brasileiras.
Tereza de Benguela, carinhosamente vista por alguns como rainha do Quilombo de Quariterê, localizado às margens do Vale do Guaporé, na atual região do estado do Mato Grosso, foi a mulher que liderou a libertação e cuidado de diversas pessoas fugidas de casas e fazendas, onde ocupavam o lugar de escravizados/as, durante o período de 1750 à 1770. Sob fortes pressões do movimento negro, ao longo do tempo, o governo brasileiro no ano de 2014 instituiu o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra através da lei n° 12.987/2014, que marca a expressão da resistência de uma das lideres quilombolas que mais lutou pela libertação de pessoas escravizadas durante o período colonial da história do Brasil.
A data, não é fruto da iniciativa plena do governo brasileiro em valorizar a memória de importantes pessoas negros/as na história do Brasil. A data surge após a luta do movimento negro e do movimento feminista negro desde a década de 1970, em prol da educação, cultura, ancestralidade e direitos básicos para a dignidade humana.
Conhecer a história de Tereza de Benguela nos remete às vivências de mulheres negras que lutaram muito para que seus iguais e descendentes pudessem sobreviver de forma livre em meio às opressões impostas. A líder quilombola deixou o quilombo de pé por muitos anos e abrigou diversos homens e mulheres negros/as indígenas. Quilombo é o território de vivências resistentes e formação de identidades ligadas à ancestralidade. Além disso, Tereza de Benguela orquestrou fugas e respostas a investidas de fazendeiros senhores de escravizados. A rainha do Quilombo de Quariterê abriu caminhos para que outras diversas lideranças negras futuras pudessem conquistar libertação e direitos, Tereza deu frutos com sua sabedoria ancestral e exemplo de poder e resistência.
A exemplo desses frutos, lembramos de grandes mulheres que foram e continuam a ser importantes para a história do Brasil e não somente, mas para a viva resistência e valorização da ancestralidade negra atravessada de sabedoria e força. Sendo elas, Dandara de Palmares, Luiza Mahin, Maria Felipa, Esperança Garcia, Zacimba Gaba, Aqualtune, Maria Aranha, Adelina Charuteira, Eva Maria de Bonsucesso, Mariana Crioula, e muitas outras líderes quilombolas e pioneiras no movimento de valorização da cultura negra no Brasil nos espaços em que ocupavam. Essas mulheres fundaram as bases das ruas e caminhos para que outras mulheres brilhantes continuassem a lutar por outras conquistas nossas, como é o caso de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Carolina Maria de Jesus, Antonieta de Barros, Conceição Evaristo, Elza Soares, Cida Bento, Petronilha Gonçalves e Silva, Beatriz Nascimento e tantas outras que optaram por seguir o legado e construir novos caminhos para as próximas que estão por vir.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 12.897, de 2 de junho de 2014. Dispõe sobre a criação do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12987.htm Acesso em: 09 de jul 2025.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro latino americano. Brasil: Zahar, 2020
LACERDA, Thays de Campos. Tereza de Benguela: identidade e representatividade negra. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras, v. 12, n. 02, p. 89-96, 2019.
Por Ellen Cristina Setubal Brito
Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena (2024), licenciada em História (2023) pela Universidade Federal do Acre e Mestranda no Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História, também pela Universidade Federal do Acre. Ativista do movimento negro, é membra do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas.