Tendo nascido e crescido numa família católica, desde criança participei de inúmeras celebrações: missas, terços, quermesses, procissões, novenas etc. Fiz primeira comunhão e crisma. Participei e liderei grupo de jovens. Por fim, cheguei a ser ministro da palavra. E foi ao longo de todo esse percurso que consolidei, a um só turno, minha formação religiosa e política.
Que ninguém se escandalize com a junção de religião e política na frase acima. Em verdade, é algo inelutável. As igrejas (e não só a Católica) estão entre as mais importantes instituições de nossa sociedade. Elas educam os indivíduos para a vida em sociedade, orientando-os a respeito dos mais diversos temas, donde avulta a dimensão política de sua atuação.
Especificamente na Igreja Católica, a orientação de seus fiéis em favor de “obras sociais” – sobretudo, em favor dos vulneráveis, aqueles a quem Jesus tratava por “pequeninos” – é elemento central. Assim, para quem a conhece minimamente, não há surpresa no fato de o tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano de 2023 ser Fraternidade e Fome. O lema escolhido não poderia ser melhor: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Provocativo e, não obstante, assaz coerente com sua visão evangélica.
Como feito anteriormente nos anos de 1975 e 1985, mais uma vez, a Igreja Católica interpela seus fiéis e as instituições sociais (públicas e privadas) a respeito de suas responsabilidades quanto ao problema da fome e os convida a somar forças para o tratamento desta aviltante chaga social.
Por certo, o flagelo da fome é uma constante em nossa história. Ocorre que, pela concorrência de fatores diversos, ele ganhou proporções ainda mais assombrosas nos últimos anos, fazendo com que nosso país voltasse ao Mapa da Fome. Segundo um levantamento, em “2022, 58,1% dos domicílios brasileiros conviviam com alguma forma de Insegurança Alimentar, dentre os quais 15,5%, isto é, mais de 33 milhões de brasileiros, experimentavam uma Insegurança Alimentar Grave”[1].
Como se vê, a tarefa para a qual a Igreja chama atenção é das mais necessárias e urgentes. Por certo, “Nem só de pão vive o homem”, é verdade. Mas também, sem o pão, não há quem sobreviva. Portanto, a questão posta é uma questão de vida ou morte e deve ser tratada na perspectiva do curto prazo, do aqui e agora. E, se o Mestre disse que veio “para que todos tenham vida e vida em abundância”, pouco ou nada faz o discípulo que desprezar ou, mesmo, menosprezar o sofrimento de milhões de seus irmãos.
Em que pese a grandeza do problema, alguns católicos (entre conservadores e reacionários) resolveram boicotar a Campanha da Fraternidade e atacar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O improvável e o absurdo encontram solo fértil no Brasil de nossos dias. Tais católicos acusam no tema da CF a intenção política de criticar o governo de Bolsonaro e, em consequência, promover os ideias “comunistas e esquerdistas”. Neste sádico delírio, orientam outros fiéis a não se envolverem na CF deste ano e nem mesmo façam doações.
Destarte, algo de igual natureza aconteceu anteriormente, quando o Papa Francisco fez a seguinte postagem em suas redes sociais: “Deus Todo-Poderoso abençoe abundantemente aqueles que dividem o pão com os famintos”. Na ocasião, entre outras coisas, o Papa foi chamado de “comunista”. Noutro momento, ao se ter pronunciado a favor da paz, foi qualificado como “safado”.
Isso que afeta a maior autoridade da Igreja também incide sobre os demais sacerdotes. São incontáveis os casos de desrespeito e agressões a padres e bispos por estes simplesmente tratarem de temas que não são benquisto por cristãos bolsonaristas.
Ao observador atento, claro fica que, para esses sujeitos, o problema não é a politização da Igreja e dos temas por ela tratados. Como foi dito alhures, à medida que orientam seus fiéis para viver em sociedade e sobre os mais diversos temas, é impossível apagar a dimensão política da atuação das igrejas. Para os bolsonaristas, o problema mesmo é o fato de que os temas abordados pela Igreja não estão em consonância com suas convicções políticas.
Para dizer de modo sintético: para eles, o problema não é que a Igreja aja politicamente; o problema é que a Igreja aja politicamente de um modo que não corrobora suas convicções politico-partidárias. Essa é sua régua, com a qual tudo medem e julgam. Por força de tais coisas, o “evangelho” que defendem não é o evangelho da paz, e sim o “evangelho da guerra”; não defendem o evangelho do amor, e sim o do ódio; não defendem o evangelho do combate à fome, e sim o evangelho que move combate aos que combatem a fome. Ou seja, defendem um anti-evangelho.
Orientando-se por tão estreita perspectiva, buscam submeter a Igreja a sua visão política. Ao que perece, querem recriá-la a sua imagem e semelhança, confundindo-a, por fim, com seu grupo político. O “messias” a quem seguem e dão ouvidos é bem outro, é aquele que afirma que é mentira ou exagero dizer que se passa fome no Brasil. Porém, o Messias verdadeiro, aquele que inspira a CF deste ano, continua nos chamando à responsabilidade, dizendo “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
[1] https://www.metropoles.com/brasil/cristaos-extremistas-de-direita-atacam-campanha-da-fraternidade-comunismo
–
Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).