Foto: Oscar del Pozzo
Ainda no calor dos acontecimentos, alguns se perguntam o que seria maior: as agressões de que o jogador brasileiro Vini Jr. vem sendo vítima, contínua e sistematicamente, ou suas força e coragem para resistir a elas?
Com razão, dizem que os atuais estádios de futebol são os sucessores hodiernos dos antigos coliseus (e estruturas semelhantes) em que, em tempos idos, os gladiadores se enfrentavam. Guardadas as devidas proporções, são mesmo. Nesta perspectiva, os jogadores de futebol seriam gladiadores de outra natureza, em outro tipo de combate, com regras outras.
Assim sendo, é lícito dizer que Vini Jr., gladiador que é, enfrenta um combate de abissal desigualdade. Além dos outros jogadores/gladiadores adversários seus, enfrenta ainda árbitros parciais, uma torcida iracunda, bem como parte da imprensa, do sistema de justiça, os cartolas etc. Vale lembrar que estamos falando de um garoto de apenas 22 anos, jogando e morando em terras alheias e, como temos visto, hostis. Por consequência, a desigualdade das forças revela a covardia dos ataques.
Dessa forma, mais uma vez, o futebol foi transformado num espetáculo grandioso e degradante, a um só turno. Através de palavras e gestos racistas, milhares de pessoas negam a outrem a dignidade de humano. Sim. É isso o que o racismo faz: superioriza uns enquanto, no outro polo da mesma relação, inferioriza outros.
Já contamos para bem mais de um século desde o fim do período colonial e da escravidão. Entretanto, o racismo forjado em seu seio (como ideias, práticas e instituições) continua marcando fortemente a mentalidade dos descendentes dos colonizadores, fazendo com que ainda se sintam superiores aos descendentes dos colonizados. Em sua obra O povo brasileiro, Darcy Ribeiro falava de uma “branquização puramente social ou cultural” querendo referir com isso:
o caso dos negros que, ascendendo socialmente, com êxito notório, passam a integrar grupos de convivência dos brancos, a casar-se entre eles e, afinal, serem tidos como brancos. A definição brasileira de negro não pode corresponder a um artista ou a um profissional exitoso. Exemplifica essa situação um diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro” (RIBEIRO, 2006, p. 206-207).
Pelo que vemos, embora seja um dos atletas mais talentosos e mais bem-sucedidos da atualidade, com grande possibilidade de ir muito mais além, a “branquização” de que falava Darcy não contempla Vini Jr. Parece mesmo que todo êxito que obteve nas terras dos colonizadores é um motivo a mais para os ataques de que é alvo, como se fosse ofensivo aos racistas mostrar do que ele é capaz.
No melhor dos cenários, os racistas – no caso, referenciados tão somente na cor da pele – procuram colocar os “diferentes” numa condição de humanos de segunda ou terceira categoria. No pior, procuram expulsá-los da comunidade humana, confinando-os em círculos de outras espécies animais, como os macacos, a que os negros são comumente associados[i]. No melhor dos cenários, riem dos diferentes, com pilhérias que ridicularizam e humilham. No pior, os agridem e até podem executá-los[ii]. Entre um cenário e outro, não há separação. Apenas gradação. E, evidentemente, para chegar ao último degrau dessa escala, é necessário antes passar pelo primeiro.
Em que pese ser uma de nossas paixões, confundindo-se com nossas identidade e cultura, essa não foi a primeira e, muito provavelmente, para nossa infelicidade, não será a última vez que o futebol será transformado nessa espécie de circo dos horrores. A dura verdade é que essa atividade, misto de esporte e arte, faz tempo foi capturada por poderosos interesses mercadológicos e políticos.
Os exemplos são abundantes, ao longo da história como ao largo do globo. Bem lembramos como a seleção brasileira foi utilizada pela ditadura militar, com o intuito de excitar o patriotismo dos brasileiros para acobertar seus desmandos e crimes vários. Em dias que ainda perto se vão, lembramos da copa que ocorreu no Catar, mesmo com toda homofobia, repressão, perseguições, ausência de liberdades, denúncia de desaparecimento dos trabalhadores que construíram os estádios, entre outras coisas de igual quilate. Não foi permitido sequer o protesto de jogadores em campo. Para o melhor transcorrer do evento, mesmo discordando, os jogadores tinham que manter a passividade e o silêncio.
Algumas conclusões se impõem. Em primeiro lugar, há a exploração política e econômica da paixão dos torcedores por seus times e seleções. É por isso que – uns por ignorância e outros por aberta conivência – os torcedores garantem o sucesso dos mais diversos torneios, seja onde for, em que condição for. A festa que fazem dá a aparência de um alegre colorido a todos os horrores, como uma espécie de carnal fúnebre. Compreensivelmente, sabedores disso, os torcedores com consciência política democrática vão esfriando sua paixão pelo futebol, mantendo reservas críticas quanto a seus times e seleções.
Em segundo lugar, parece que aqui se manifesta aquilo que tratei em outra ocasião como a política da antipolítica. Isto é, enquanto perseguem seus interesses econômicos e políticos, submetendo o futebol inteiramente a eles, os “donos da bola” procuram se apresentar como apolíticos, como aqueles que se interessam somente pelo sucesso do espetáculo. A questão é que, enquanto dirigentes, empresários e governos (esses são os verdadeiros donos da bola) se articulam politicamente, abertamente e/ou em conluio, procuram interditar toda e quaisquer críticas a eles, tratando-as como críticas políticas e deslegitimando-as justamente por ser o que são, a saber, críticas políticas. Argumentam que não se devem misturar futebol e política. Ora vejam!!!
No fundo, claro está, o problema não é se o futebol pode ou não se misturar com a política. Eles já estão umbilicalmente ligados, faz muito tempo e de muitas maneiras. A grande disputa é em torno de quem pode misturá-los e em favor de quem. Os de cima lutam para manter esse monopólio político, ao passo que, por outro lado, procuram deslegitimar os de baixo por questioná-los.
E não é isso o que, entre outras coisas, o recente episódio envolvendo Vini Jr. nos ensina? Tudo funciona mais ou menos da seguinte maneira: que a torcida manifeste racismo, é coisa que pertence ao mundo do futebol; que Vini Jr. reaja ao racismo com a veemência que a agressão exige, é coisa estranha ao mundo da bola, coisa que pertenceria a outro mundo, o mundo da política. Agredir, ser racista? Pode. Reagir, defender-se, ser antirracista? Não.
Sabemos por nossa larga experiência que é comum os filhos aprenderem a gostar do futebol com os pais, aderindo a seus gostos, valores e práticas. Com algumas variações, as novas gerações tendem a levar esse “amor” para o resto de suas vidas. Por coisas como essas, o futebol cumpre um papel de espetáculo educativo, inelutavelmente.
Por ter se dado num palco em que se deita tanta luz, para o qual se voltam tantos holofotes, o caso de Vini Jr. há de ter grande influência em como as atuais e as próximas gerações entenderão o futebol. Caso passe em brancas nuvens ou se resolva de modo a aliviar a punição à conduta dos racistas, o caso servirá como um sinal verde para o racismo e outras práticas igualmente bárbaras. Caso seja resolvido de modo a colocar limites em toda conduta que agrida ou desrespeite a dignidade humana, poderá colocar o futebol a serviço do bem, do respeito e da tolerância.
Como tudo isso está indissoluvelmente ligado às relações de poder, é preciso não ser ingênuos, ao ponto de acreditarmos que as coisas vão se resolver sem pressão, sem luta. Não vão. E como nos tem mostrado bravamente Vini Jr., essa é uma luta que deve ser travada dentro e fora dos campos. De nossa ação ou inação, dependerá se o futebol continuará sendo um espetáculo de barbaridades ou se, ao contrário, será um espetáculo de amizade ou, pelo menos, de respeito entre todos.
Por fim, cabe dizer que não é preciso coragem para ser racista num ambiente racista. Agora, para ser antirracista num ambiente racista, isto sim, requer grande coragem. Por isso, é sem sombra de dúvidas que digo que as força e coragem de Vini Jr. são muito maiores que as agressões que ele vem sofrendo. Como quer que se desdobre o caso, no meio dessa escuridão, a tendência é que sua estrela brilhe ainda mais forte. Ele sai ainda maior do ocorrido. O mesmo não se pode dizer dos racistas adversários seus…
[i] Foi o que fizeram com Vini Jr., chamando-o de macaco, em mais de uma ocasião.
[ii] Salientamos o episódio em que fizeram um boneco do jogador e o penduraram pelo pescoço com uma corda. O que deixaria uma ameaça de morte mais explícita?
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[1] Professor e pesquisador do Ifac/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência; Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédia facínora e A política da antipolítica no Brasil (Vol. I e II).
[1] Foi o que fizeram com Vini Jr., chamando-o de macaco, em mais de uma ocasião.
[1] Salientamos o episódio em que fizeram um boneco do jogador e o penduraram pelo pescoço com uma corda. O que deixaria uma ameaça de morte mais explícita?