Não há fenômeno ou fato social que, zelando pela precisão, não devamos definir como processo. Assim as crises, as guerras, as revoluções e por aí vai. E não há nenhuma razão para que a mesma definição não seja aplicada à concepção de golpe de Estado.
Mais precisamente, podemos definir o golpe de Estado como um processo multifacetado. Por ser processo, entendemos que ele não se dá instantaneamente, que tem suas fases de cogitação, planejamento, preparação e execução. Durante essas fases, por força dos conflitos que o processo encerra, tudo pode mudar.
Por ser multifacetado, entendemos que envolve múltiplas estratégias e sujeitos, que pode se dar em várias frentes, contendo, a depender da correlação de forças então em disputa, avanços e recuos. Há mesmo a possibilidade de o processo estancar a meio caminho, sem percorrer todas as fases elencadas acima, quedando-se na condição de tentativa de golpe.
Com efeito, ao contrário do que uns tantos postulam hoje, o golpe de Estado não tem uma única forma, qual seja, aquela tornada “clássica”, com soldados armados (e/ou milícias) e tanques nas ruas. Em verdade, o formato do golpe – se com ou sem repressão; se mais ou menos violento etc. – depende das condições e da correlação de forças em que a luta se desenvolve.
Veja-se, a este respeito, o golpe que foi aplicado em Dilma Rousseff em 2016. Não dispararam nenhum um tiro. Gota nenhuma de sangue foi derramada. Impopular como estava a então presidente, sem o amparo do Legislativo e do Judiciário, tomaram dela o poder sem maiores problemas para a ordem política.
Aparentemente, uma vez que seus algozes lançaram mão do pretexto das tais “pedaladas fiscais”, a ordem constitucional não foi sequer arranhada e o direito fora estritamente observado. Neste quadro interpretativo, o golpe, em vez de violar a lei, teria assegurado sua observância. Dilma, vilã; não vítima.
Em condições favoráveis e com uma correlação também ela favorável, o golpe se deu sem sobressaltos. Mesmo ilegítimo, a manutenção de Temer como presidente dava um verniz de legitimidade à situação. Na verdade, essa “tranquilidade” foi imprescindível para que o golpe fosse efetivado.
Por seu turno, sabendo que não teriam seus poderes ameaçados pelo golpe, membros do Legislativo e do Judiciário se sentiram à vontade para endossá-lo ativamente ou, quando nada, para fazer vistas grossas com o que estava ocorrendo. Embora ferisse a ordem democrática nalguns de seus pontos mais fundamentais, o golpe aplicado não ameaçava suspendê-la no todo e colocar outra em seu lugar.
Infelizmente, para Bolsonaro, a situação era bem outra. Como é amplamente sabido, Bolsonaro – junto com seus filhos – fez carreira e fortuna na democracia, mas nunca se sentiu à vontade em ambiente democrático. Nunca escondeu seu apreço pela ditadura, chegando a fazer apologia a um torturador dentro do Congresso Nacional.
Nem bem concluíram a contagem dos votos das eleições de 2018, na qual se sagrou presidente, afirmou que as urnas foram fraudadas, que ele havia ganhado ainda no primeiro turno. Por muito tempo, disse ter provas que comprovariam a acusação e que, em momento certo, as apresentaria. Nunca apresentou nada, além de fake news e distorções em cascatas.
Demonstrando insegurança, Bolsonaro dava claros sinais de que, mesmo as eleições de que saía vencedor, não lhe pareciam “confiáveis” e “legítimas”. Entre uma mentira e outra, entre tantas ameaças antidemocráticas, disse que jamais aceitaria o resultado das eleições (2022) se não fosse com voto impresso. Perdeu a disputa em torno do voto impresso. Todavia, continuou com as mentiras e as ameaças, insuflando seus apoiadores a não aceitarem sua derrota, coisa apontada inúmeras vezes pelos mais respeitados institutos de pesquisa.
Apesar de ter abusado da máquina pública, como nunca se viu e talvez nunca se verá na história, perdeu para Lula. Só havia uma forma de se manter no poder e se livrar das consequências dos abundantes crimes que cometeu ao longo de seus quatro anos de mandato como presidente: dar um golpe. Tratava-se, agora, de envidar ainda mais esforços para operá-lo.
As evidências de tal intento são vastamente conhecidas, já que a situação impunha a Bolsonaro e seus comandados agirem de modo ainda mais escancarado do que fizeram até então. De um lado, mantiveram as acusações de fraude nas urnas. De outro, deixaram que os caminhoneiros interditassem ruas e estradas em diversas cidades e estados, criando um caos nas rodovias. Minutas de golpe foram encontradas na casa de Anderson Torres (seu ex-ministro da Justiça) e no celular de Mauro Cid (seu ex-ajudante de ordens).
No dia da diplomação de Lula, as ruas de Brasília foram tomadas por atos terroristas. Os acampados em frente aos quartéis se assanharam. Entenderam que era tudo ou nada. A possibilidade de um golpe era tudo em que podiam se agarrar. E assim o fizeram. E em ato de caráter claramente terrorista, planejaram explodir bombas. Sem êxito até aí, por fim, veio o 8 de janeiro.
Deixemos registrado antes de avançar. Observados em ampla perspectiva, todos esses atos e atitudes conformam um conjunto diverso, mas muito bem articulado e orientado para um fim: evitar a posse de Lula e conseguir, dessa forma, a manutenção de Bolsonaro na presidência. E nada disso teria ocorrido sem a anuência e o estímulo de Bolsonaro e daquelas pessoas próximas a ele que, de quando em vez, desempenham a função de porta-vozes seus.
Por certo que há, nesse emaranhado de coisas, algo de patético e caricato, risível mesmo. Todavia, nada disso apaga a real ameaça à nossa democracia. E, se quisermos preservá-la, é exatamente esse traço que deve merecer de nós mais atenção. Um criminoso pateta é tão criminoso quanto um sério e sagaz. Patetice não é atenuante para crime.
Bolsonaro e bolsonaristas dizem, em sua própria defesa, que não houve tentativa de golpe, já que não tinha ninguém armado no dia 8 de janeiro (e, se tinha, não fez uso da arma que porventura portasse). Como dissemos acima, porém, o golpe de Estado é um processo multifacetado e seu formato depende das condições e da correlação de forças em disputa. Ele não se faz conforme se quer. Faz-se conforme se pode. Caso não seja possível, fica-se apenas na tentativa de golpe, o que é igualmente crime.
Muitos bolsonaristas tentaram se valer de armas e explosivos para dar o golpe. Mas não lograram êxito. Não foi porque não tentaram usar de violência para operar o golpe pretendido. Foi porque, malgrado seu, não conseguiram. Devemos pôr em relevo, ainda, que a situação teria sido bem outra se a cúpula do Exército houvesse embarcado nesta aventura golpista. Entretanto, além do caráter de cada comandante legalista, contavam em desfavor da horda bolsonarista a falta de apoio (de parte) da imprensa, da população, do Legislativo, do Judiciário e, não menos importante, do governo estadunidense.
Não foi falta de vontade de Bolsonaro. Foi a falta de condições favoráveis ao golpe que ele intentava operar. Seu espírito autocrático fez com aqueles que outrora derrubaram Dilma sentissem o perigo. O Legislativo – onde o centrão impera soberano – e o Judiciário, não apenas nada ganhariam, como teriam muito a perder. Até poderiam ser fechados, já que, certamente, um segundo mandato de Bolsonaro seria ainda muito pior que o primeiro. Se o golpe aplicado em Dilma não ameaçava a suspensão da ordem democrática, um golpe com Bolsonaro ameaçaria.
Por seu turno, o governo dos EUA, com seus miliares, tendo enfrentado o perigo de um golpe com Trump em seu próprio quintal, mandou claros recados de que não apoiaria ações golpistas.
Em suma, uns tantos daqueles que abriram a caixa de Pandora, contemplando os males que dela saíram, resolveram deixá-la fechada dessa vez. Aliás, estão tentando fechá-la… O perigo não passou e muitos são os males a passearem entre nós, assombrando-nos… Por ora, o absurdo ainda povoa nosso cotidiano…
Depois de tudo isso, os bolsonaristas lutaram pela abertura de uma CPMI para investigar as atos do 8 de janeiro. Num segundo, dizem que não houve tentativa de golpe e centenas de “patriotas” estão presos e sendo processados injustamente. Noutro segundo, porém, dizem que o atual governo sabia das intenções de golpe – que eles estavam operando !!! – e não fez nada para impedir. Para defender os “patriotas”, não teve tentativa de golpe; para culpar o governo, teve tentativa de golpe, sim. Com eles, é sempre assim: a lógica é mandada às favas.
Por fim, os bolsonaristas afirmam que não se pode julgar ninguém por golpe porque golpe não houve. A questão é que só se pode julgar, agora, o golpe porque ele foi frustrado. Por isso, é que se julga a tentativa de golpe, e não o golpe em si – e isso está perfeitamente contemplado em nossa definição de golpe como um processo. Caso o golpe tivesse sido exitoso, quem o tivesse aplicado não poderia ser julgado porque, ao sair vitorioso do processo, submeteria seus adversários e todas as instâncias e instituições que lhe pudessem criar problemas. Portanto, um golpe de Estado vitorioso só pode ser julgado a posteriori, quando quem dele se beneficiou perdeu as forças que conseguiu reunir nele e através dele.
A correta compreensão desse fato tem grande relevância para nossas democracias hoje. Se sujeitos que abertamente atentaram contra a democracia de seus países, com ações e omissões, não forem exemplarmente punidos, o que obstará que eles mesmos ou outros façam ainda pior?
Uma das maiores virtudes da democracia são suas liberdades. Mas devemos vigiar para que tais virtudes sejam pervertidas pelos partidários da ditadura e se transformem, por assim dizer, em uma espécie de calcanhar de Aquiles. Não devemos permitir que reivindiquem liberdades democráticas para acabar com a democracia.
Não será o suficiente, mas o julgamento que pode levar Bolsonaro à inelegibilidade, cuja retomada está marcada para o próximo dia 27, dará importante contribuição à nossa democracia: mostrando que este é um sistema de liberdade, e não de permissividade. É necessário que quem deve pague pelo crime que cometeu. E, ao contemplar o resultado dessas ações, outros sejam desencorajados a enveredar por esse mesmo caminho de crimes.
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Israel Souza é professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).