Por Mariana Letícia Passos
Quando penso nos processos históricos que ocorreram para que, no dia 29 de novembro de 2023, o Congresso Nacional instituísse a Lei 14.759/2023, que declara feriado nacional o dia 20 de novembro, me recordo dos meus anos iniciais no ensino fundamental, quando, em uma aula de história, me deparei no livro didático com uma fotografia de um cartaz comemorando o Dia da Consciência Negra, segurado por pessoas pretas e pardas. Admito que não me recordo de muita coisa além disso, mas o diálogo que tive com a professora ficou gravado na memória. Eu estava revoltada ao descobrir a existência do feriado, porque, pasmem, é a data do meu aniversário, e onde já se viu um feriado em que não se fica em casa?
Trago essa memória da infância ao texto por outras questões. Em minha cidade natal, Maringá, situada ao norte do Paraná, o dia 20 de novembro não é comemorado fora das escolas públicas, de algumas bolhas universitárias e outras entidades. Isso levou a uma série de tentativas de mudança, como o Projeto de Lei 16.558/2022, que propunha declarar a data como feriado municipal. O que levou ao dia 11 de julho de 2023, quando, mesmo com o plenário lotado de representantes de entidades, lideranças comunitárias e religiosas, coletivos e movimentos negros, núcleos de pesquisa universitários, órgãos, partidos, deputados federais e estaduais manifestando-se a favor da proposta, ela foi rejeitada por 6 votos a 5.
Então, cinco meses depois, a data se tornou feriado nacional com um placar histórico de 286 votos a 121, o que nos traz até a atualidade. Estamos em 2024, o primeiro ano em que será comemorado o dia 20 de novembro como feriado nacional, antes uma comemoração opcional para cada município, agora fará parte do nosso calendário oficial. E por que essa comemoração tem tanta importância? Devo esclarecer que a história não é um reflexo neutro do passado, mas sim uma construção social, influenciada por diversos fatores, como grupos dominantes que moldam a narrativa histórica para legitimar seus interesses e valores; diferentes concepções de mundo e diferenças sociais e culturais.
Portanto, quem tradicionalmente tem o poder de contar a história? Quais são os personagens históricos considerados importantes? Essas narrativas históricas representam quem?
Se pensarmos que o sistema escravocrata colonial foi introduzido no território brasileiro nas primeiras décadas do século XVI e que seu fim se deu por motivos políticos de interesse maior apenas no século XIX, veremos que o processo abolicionista não inseriu efetivamente os indivíduos africanos e negros brasileiros no novo sistema de produção capitalista. A realidade da não inserção no mercado de trabalho manteve os negros em estado de dominação (não de submissão), mas com o diferencial do desemprego, imposto pelo plano de embranquecimento brasileiro, com a criação de políticas de imigração que conduziam mão de obra imigrante branca e barata.
Ao refletir sobre a sociedade em que vivemos, percebemos que o racismo estrutural, com seus preconceitos velados e estigmas raciais, impostos à maior parte da população brasileira, revela muito sobre as narrativas hegemônicas a que somos submetidos. Não faz muito tempo que os descendentes de africanos da diáspora escravista, a partir de muita luta e resistência, passaram a ocupar espaços de poderes onde suas vozes começaram a ser ouvidas, possibilitando assim, contar suas próprias histórias e as de seus antepassados e de demonstrar a diversidade cultural de uma herança ancestral que, ainda hoje, tentam apagar da história. A diversidade cultural foi sistematicamente suprimida e desvalorizada. Dessa forma, lutando contra o eurocentrismo e abraçando a luta decolonial, muitas vozes subalternizadas conseguiram ser ouvidas e exaltadas pelos seus.
Por esses motivos, entendo o dia 20 de novembro como algo que vai além de um simples dia livre na semana. Ele nos convida a refletir sobre o racismo estrutural e a longa luta para que fosse reconhecido como feriado nacional. Voltando aos processos históricos, a escolha da data da morte de Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares, não foi aleatória; na ausência de registros sobre seu nascimento, o Grupo Palmares, já em 1971, elegeu essa data por sua forte representatividade relacionada aos quilombos e seu papel na luta contra a escravidão e inspiração ao movimento negro brasileiro.
A instituição dessa data, que celebra e ressalta a história e a cultura afro-brasileira, incomoda profundamente aqueles que se opõem à luta antirracista. Utilizando-se do conceito de Sankofa, que valoriza a ancestralidade e seus conhecimentos, em que recordamos o passado para entender o presente e assim construir um futuro, torna essa celebração indispensável para o processo de conscientização racial e ainda mais desafiadora para quem busca negar a história e a contribuição dos negros para a formação do Brasil.
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BARBOSA, Muryatan. Eurocentrismo, História e História da África. Sankofa, Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. nº 1, jun 2008.
BRASIL. Lei nº 14.759, de 21 de dezembro de 2023. Declara feriado nacional o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14759.htm. Acesso: 17 nov. 2024.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A Invenção da África no Brasil: Os africanos diante dos imaginários e discursos brasileiros dos séculos XIX e XX. Revista África e Africanidades – Ano I – nº 4, fev 2009.
RAMALHO, Victor. 20 de novembro: Brasil terá primeira celebração de feriado que foi rejeitado em Maringá. Maringá Post, 4 nov. 2024. Disponível em: https://maringapost.com.br/cidade/2024/11/04/20-de-novembro-brasil-tera-primeira-celebracao-de-feriado-que-foi-rejeitado-em-maringa/. Acesso: 17 nov. 2024.
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Mariana Letícia Passos de Oliveira Martins – Graduanda do curso de História na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atuante dentro do Centro Acadêmico de História Nadir Aparecida Cancian desde de 2022. Atualmente sendo orientada dentro do Programa de Iniciação Científica – PIC, na área de História da América Latina e correntes migratórias, intitulada: Migrantes maringaenses entre a Espanha e o Brasil: experiências e desafios antes e após a crise de 2008. Em paralelo atua como membro do Laboratório Pesquisa de História Agrária (LAPHA-EUM) onde foi participante bolsista pelo PROPRIETAS (2024) do projeto de extensão intitulado: Higienização, Catalogação e Digitalização do acervo do Instituto Brasileiro do Café Escritório Maringá (PROCDH-UEM