Uma onda coach toma conta do Brasil. Trata-se de um fenômeno amplo e diverso, composto por indivíduos que, por meio de conselhos e treinamentos, se propõem a ajudar outras pessoas a atingirem seus objetivos pessoais e/ou profissionais. Mais comumente, oferecem serviços como palestras, cursos ou sessões.
Atuando em áreas as mais diversas e com destacada presença nas redes sociais, há coachs que contam com milhares de clientes. Alguns somam milhões de fiéis seguidores, que fazem de suas palavras objeto de fé. Muitos entre eles são jovens, carismáticos e de boa retórica, capazes de divertir e fascinar ao mesmo tempo. Além do mais, costumam calibrar suas falas com elementos extraídos da religião, da(s) ciência(s) e da filosofia, procurando extrair daí a respeitabilidade para o que ensinam.
Como atuam em área em franca expansão, mas ainda desregulamentada, aberta a todo tipo de gente e de prática, a significativa influência que exercem é, em não poucos casos, proporcional ao perigo que representam.
Antes do mais, cumpre registrar que bem sabemos que em toda área há gente boa e honesta e gente ruim e desonesta. Assim sendo, é forçoso dizer que o que falamos a seguir não se estende, sem mais nem menos, a todos os coachs, mas apenas a alguns. Entre estes alguns, escolhemos uns poucos, mas que são de grande destaque.
Impactar faz parte das estratégias dos coachs que se destacam. Por isso, seus discursos são grandiloquentes, desconcertantes, cheios de metáforas e provocações, bem como de frases de efeito tão pomposas quanto vazias. Aparentemente colocando-se na contracorrente, parecem subverter o senso comum. As promessas que fazem são parte fundamental dessas estratégias. Uns prometem o amor verdadeiro; outros, o emprego dos sonhos ou fortuna rápida e certa; outros ainda, a fórmula da felicidade e por aí vai.
Dessa maneira, transformam coisas altamente complexas e difíceis – senão impossíveis, a depender da condição daqueles a quem são feitas as promessas – em coisas simples, ao alcance da mão. Fazem parecer que tudo é questão de vontade. Basta querer, e tudo se fará conforme se quiser.
Lívian Aragão, filha de Renato Aragão (o eterno Didi Mocó), em recente palestra, mostra exemplarmente o que estamos a dizer. Disse ela: “Todo mundo tem 24 horas no dia. Por que algumas pessoas conseguem fazer tantas coisas, e outras parecem não sair do lugar? O nome disso é produtividade, como você dá conta do seu tempo. O sol nasce para todo mundo. O que a gente faz com essas 24 horas que temos no dia?”.
Antes disso, ela ensaiou uma problemática filosófica, colocando-se a questão de se ela passava pelo tempo ou tempo passava por ela. Sim. É costume entre eles aparentar profundidade no que dizem, talvez para encobrir o que há de superficial em suas reflexões.
Passando esse ponto, no que se seguiu, ela não chegou nem a ser simples. Foi simplista mesmo. Nos termos por ela apresentados, é óbvio que a filha de alguém cuja fortuna é estimada em quase duzentos milhões há de ser mais “produtiva” que aqueles (que são maioria entre nós) cuja condição é em tudo distinta, para não dizer precária.
A condição social privilegiada de que ela goza, e para a qual ela não deu contributo nenhum, é o que garante sua “produtividade”, e não o contrário. Dito de outro modo: sua condição social privilegiada é que lhe permite ser “produtiva” – sempre segundo seus próprios termos, vale frisar -, e não sua “produtividade” que lhe permite a condição social que tem, como ela quer fazer parecer.
Mais que um simples equívoco, a inversão na ordem de tais fatores – fazendo com que o efeito seja tomado pela causa e vice-versa – cumpre uma função nada desimportante em face de ordem tão desigual como a nossa. Em primeiro lugar, oculta as estruturas de desigualdade (de classe, cor e gênero) que tendem a se reproduzir, dando mais oportunidade a quem já tem oportunidade e negando oportunidade a quem menos tem oportunidade.
No fim das contas, faz parecer que quem venceu o fez por mérito próprio e quem perdeu, perdeu porque não se esforçou o suficiente, tendo desperdiçado irresponsavelmente seu tempo. Ora, a questão é que quem nasceu em “berço de ouro”, a priori, não tem que vencer nada. Já entrou no jogo do lado dos vitoriosos. Dado que capital geral capital, só tem que manter as coisas. se quiser travar suas batalhas e tentar suas próprias conquistas, é comum que se sirva do capital de seus pais como base.
Por outro lado, quem não nasceu em tal condição já nasceu tomando parte no time dos derrotados. Tomou parte no jogo perdendo de goleada, e o tempo está rodando. Este é que tem que lutar para vencer e só o fará se subverter a ordem de coisas em que nasceu.
Pela prisma da coach Lívian Aragão, em que as vantagens de uns poucos e as desvantagens de uns muitos ficam fora da equação e do horizonte de visibilidade, a farsa da meritocracia parece verdadeira. Com efeito, só assim, fazendo tábula rasa das desigualdades entre os indivíduos, é que herdeiros milionários podem jactar-se de serem “produtivos”.
Uma coach muito influente nas redes sociais foi muito mais ousada. Em um vídeo, ela dizia que ser herdeira é pior que ser pobre, porque, segundo entendia, “os herdeiros são muito mais cobrados” – o leitor decide se fica com pena dela ou se ri.
Alguém vai cobrar o aluguel dela? A parcela do eletrodoméstico ou do móvel que ela comprou à prestação? A conta que ela, já sem dinheiro na primeira semana do mês, teve que pendurar na mercearia ou no açougue?
Além da vontade, outro elemento muito presente nos ensinamentos dos coachs de que tratamos aqui é a “mentalidade”. Com a mentalidade correta (“mentalidade positiva” ou “mentalidade de rico”), tudo pode mudar. A esse propósito, uma coach dizia que era preciso para de pensar como pobre. Para isso, ela aconselhava os pobres a andarem sempre e só com ricos, que procurassem frequentar os mesmo lugares que os ricos etc. E os ricos vão aceitar os pobres em seus círculos?
Outra coach postulava que tudo começa na infância. Quando os ricos levam seus filhos a uma loja de brinquedos, não impõem escolhas a eles. Deixam eles livres. Já os pobres, dizia, sempre limitam seus filhos, dizendo que ou os filhos escolhem uma coisa ou outra, porque as duas não dá. Por causa disso, ainda segundo ela, os filhos crescem com mentalidade pobre, limitada.
Mas as limitações vêm da “mentalidade” ou das condições materiais das famílias pobres? Eis uma questão que esse tipo de “pensador” jamais se colocaria, pois isso colocaria a nu as fragilidades e contradições do que ensinam.
Longe de nós negar que, por mais desigual que seja nossa sociedade, as chances de mobilidade social existem. De fato, elas existem. Mas as estruturas sociais são de tal ordem que não se deixam amoldar à nossa vontade ou à nossa mentalidade. Em verdade, via de regra, elas se impõe a nós. Ignorar isso, que é um truísmo em disciplinas como sociologia e economia, é vender ilusões, lucrando às custas da ignorância e do desespero das pessoas.
Não obstante, há riscos ainda maiores. O “coach messiânico” – é assim chamado porque suas palestras são carregadas de tons religiosos – Pablo Maçal quis ensinar um grupo de 32 pessoas a “subir na vida”. Para tanto, levou-as a subir o Pico dos Marins, localizado na Serra da Mantiqueira, em São Paulo. As condições climáticas eram as mais adversas. Resultado: todos foram levados a uma condição que implicou risco de morte e tiveram que ser socorridos pelos bombeiros.
Em certo sentido, é como se tivesse um cego conduzindo outros cegos. Entretanto, em que pese a irresponsabilidade, somos obrigados a dizer que Maçal enxerga muito bem. Não por acaso, ele é um dos coachs mais bem-sucedidos no Brasil, chegando inclusive a se lançar numa corrida presidencial.
Noutra ocasião, o “coach messiânico” preparou uma maratona surpresa. Sem preparo para tal, um jovem morreu ao enfrentar o desafio. Maçal se eximiu de responsabilidade, afirmando que o jovem fez o que fez porque quis. Coisas assim mostram sobejamente os riscos que coachs dessa estirpe podem representar.
Vivemos numa sociedade de desigualdades abissais, em que a maioria das pessoas vive sob violências de todos os matizes, sendo a ignorância mesmo uma das formas de violência. Num mundo de tanta violência e privação, as promessas de melhoria de vida representam a força atrativa de um oásis no meio de um deserto.
E assim os deserdados dessa terra se tornam presa fácil de todo tipo de espertalhão, desses que procuram fazer riqueza em cima da miséria alheia. E isso, conforme vemos, faz desse um problema não só da educação e da política, mas também – e talvez, principalmente – um problema da justiça.
Por fim, para concluir, dizemos que, se é certo que os coachs hoje representam uma espécie de onda que cresce e avança entre nós, é igualmente certo que se trata de uma onda que arrebenta, sobretudo, sobre os mais simples.
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Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).