Por Camila Holsbach para o Agazeta.net
Já nas primeiras horas da manhã, antes mesmo que o calor escaldante de Rio Branco se torne quase insuportável, uma comitiva de vidas anônimas começa a surgir nas ruas. Homens e mulheres, envoltos em trapos e sorrisos – ora ausentes – com pés descalços atravessam a Getúlio Vargas, a Floriano Peixoto e tantas outras vias e praças, principalmente na região central da capital, trazendo consigo suas histórias numa cidade que se desvia de seus olhares. Moradores de rua invisíveis aos olhos dos que têm medo ou não os aceitam por perto.
Muitos rostos conhecidos ainda que não se saibam os nomes reais desses personagens coadjuvantes ou simplesmente figurantes num filme que reflete uma batalha silenciosa e que vem carregado de preconceitos. São pessoas que se tornaram paisagens que a população escolhe ignorar; invisibilidade que é carregada por um número crescente de pessoas, cujas vidas marginais seguem longe da segurança do lar e das promessas de um futuro minimamente tranquilo. As drogas tornam-se alento para uma existência tão castigada pela falta de amor.
Na capital acreana, onde a umidade da Floresta Amazônica e o calor do clima equatorial se misturam ao som do trânsito apressado, o drama dos moradores de rua tem ganhado visibilidade, ainda tímida, e respostas são necessárias para tantas perguntas que teimam em surgir. E, entre essas respostas, a mais constante tem sido a voz de um órgão guardião dos direitos humanos no estado: o Ministério Público do Acre.
“O Ministério Público atua monitorando os termos da ADPF, do Supremo Tribunal Federal, e também o Ministério Público conta com o NATERA, que é o núcleo especializado em atendimento às pessoas com saúde mental deteriorada, um atendimento voltado para o psicossocial. Então nós temos programas e estudos de forma estruturante no NATERA, que viabilizam as nossas ações”, destaca o promotor de justiça de direitos humanos e defesa da cidadania Thalles Ferreira.

Mestre em Direito e Políticas Públicas e especialista em Direitos Humanos e Responsabilidade Social, Thalles destaca alguns desafios. “O preconceito em relação a essa população, a negligência em relação a essa população, a violência a que essa população está submetida todos os dias. Então, esses são os principais desafios. Afinal, a gente entra nos sites da nossa cidade, do nosso estado, e todo dia a gente se depara com um caso de violência, de agressão perpetrada contra a pessoa em situação de rua”.
Em Luta pelo Resgate da Dignidade
Não é apenas a luta pela sobrevivência, mas uma busca constante por dignidade, por algo que se perdeu nas esquinas, nos guetos, nas escadarias do velho Papouco ou nos barrancos da Base; um destino que, muitas vezes, é traçado pelo abandono, pela desesperança e pela falta de oportunidades. São vidas que, por falhas no sistema ou nas relações familiares, ficaram à margem.
A atuação do Ministério Público do Acre, que há anos vem tentando articular soluções para esse problema, é um esforço por restaurar o que a sociedade deixou cair pelos parques e calçadas de sua indiferença. O número de pessoas em situação parece ter aumentado de forma exponencial na última década e os motivos para que se mantenham nela são vários, mas o principal é a ruptura com o ambiente familiar.
“Há um aumento significativo do número de pessoas em situação de rua em todo o estado do Acre e isso ocorreu sobretudo e fundamentalmente após o fenômeno da pandemia. Esse aumento decorre de vários aspectos. O primeiro deles, é bom a gente ressaltar sempre até para romper com a barreira do preconceito e da discriminação, é o rompimento familiar. E a questão da droga é o quarto fator a levar uma pessoa a morar na rua a usar a rua como a sua moradia. Então é falso e errôneo a gente dizer que as pessoas em situação de rua são drogadas. O que acontece é um rompimento da estrutura familiar que leva a pessoa, na sua maioria os homens, a terem a rua como abrigo”, explica Ferreira.
O MPAC tem trabalhado em diversas frentes. A busca pela humanização do poder público é constante: cobrar abrigo, saúde e educação para essas pessoas menosprezadas. Educação essa que pode fazer a diferença na vida de muita gente.
“Em 2024 houve programa específico para programa de educação. A turma EJA funcionou no Centro POP; houve também formação no IEPTEC, justamente para essa população em situação de rua, para fazer a inserção dessas pessoas no sistema de educação, inseri-las no trabalho. Há também atendimentos no Natera viabilizando a comunicação com a rede de atendimento psicossocial para que as pessoas sejam encaminhadas devidamente para o CAPS e para tratamento da saúde mental”, afirma o promotor.
Refúgio na Rua e Sonhos Esquecidos
Há, no entanto, uma complexidade maior nesse cenário. Os moradores de rua de Rio Branco não são uma massa homogênea. Há aqueles que resistem a qualquer tipo de ajuda, outros até vão a abrigos, mas tão logo podem retornam às ruas, como se lá fosse o único lugar de refúgio; uma ilusão amarga que é travestida de autonomia e felicidade.
As histórias são muitas, fragmentadas. Histórias que poucos querem saber por estarem embebidos de preconceito e receios ou apressados para cumprir uma escala de vida que mais parece uma roda hamster.
Alguns nasceram na capital, outros vieram do interior à procura de um futuro que nunca veio. A maioria, no entanto, chegou às ruas pelas mãos da desesperança.
“Eu já fui alguém,” diz Antônio Barbosa, 58, conhecido no mundo das ruas como Marcha Lenta. Barbosa revirava o lixo, assim como no poema de Manuel Bandeira, em busca do que comer num fim de tarde laranja com tons polarizados nas proximidades da praça Plácido de Castro. Com um olhar cansado e rosto marcado pelo tempo e pela dor das ausências, Antônio afirmou que já teve uma vida normal. “Eu tinha uma família, uma vida. Tenho três filhos e uma mulher, mas a gente se separou”.

Ao ser questionado sobre o motivo de viver nas ruas, Antônio diz sem titubear que este fora “o único lugar que restou.” E explica que são 12 anos nessa situação. “Mais de uma década, né (?!), desde que uns amigos que não são amigos de verdade me chamaram pra boca [sic] pra curtir uma fumacinha”. Mas assegurou que vai “largar essa vida” enquanto comia um pedaço de bolo encontrado numa lixeira.
Antônio não sabe o que é o amanhã, mas lembra o que foi o ontem. E, entre saudades e vícios, ele se perde num ritmo lento assim como seu apelido sugere.
Busca por dignidade
Rio Branco luta contra o tempo. As políticas públicas existem, mas não são suficientes. A cidade cresce, mas suas soluções ainda são pequenas para o tamanho da dor que é dormir ao relento, em bancos ou calçadas.
E é aqui que o Ministério Público se torna uma presença essencial desafiando instituições a não se conformarem com a marginalização, agindo muito mais que um fiscal da lei: um defensor dos direitos humanos que se recusa a deixar que o descaso torne-se uma regra velada, fazendo da busca pela dignidade uma luta diária e constante.
“O Ministério Público vem monitorando o cumprimento de uma decisão do ministro Alexandre de Moraes referendada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal onde numa ação estruturante determinou que todos os municípios incluindo todas as capitais implementassem uma série de ações para sanar a negligência estatal em relação às pessoas situação de rua”, disse. “Então, são várias ações que são implementadas e o Ministério Público vem monitorando o cumprimento dessas ações. O estado do Acre foi o primeiro estado da federação a fazer pactuação com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e assinou um termo de compromisso com o plano que foi elaborado pelo governo federal e vem formando seu comitê elaborando seu plano e vem cumprindo com as determinações do [Plano] Ruas Visíveis”, explicou Ferreira.
Esperança que não morre
Apesar das dificuldades, há momentos de esperança. Em algumas ações, em pequenos gestos há a demonstração de que a cidade não está condenada à indiferença. E o Ministério Público é agente principal nessa batalha árdua e hercúlea.
“O Ministério Público entende que os direitos das pessoas em situação de rua é o direito a ter dignidade e de ter a sua dignidade humana respeitada; que haja casas de acolhimento, restaurante popular, cozinha solidária, programas de moradia destinado para essa população, inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, qualificação dessas pessoas”, frisou.
Enquanto isso, nas ruas de Rio Branco, cidadãos seguem sua rotina; moradores esquecidos entre as luzes da cidade – inclusive aquelas do Natal – e as sombras dos postes com lâmpadas queimadas. Eles são invisíveis, mas seguem resistindo e teimando tal qual árvores que nascem em meio a concretos. Talvez, aos poucos, com o esforço de todos — do Ministério Público, das autoridades constituídas e da própria população — a população aprenda a ver além da indiferença, construindo uma realidade onde todos tenham lugar (como aquele garantido pela Constituição). Com nome; com rosto; com história; com direitos.
