[…] “E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” – Walter Benjamin.
Em princípio, o termo “história a contrapelo” cunhado por Walter Benjamin, foi filósofo, ensaísta, tradutor e crítico literário alemão. em sua obra Teses sobre o conceito de Históri¹, tornou-se algo fundamental principalmente para o nosso ofício de historiadores, pois Benjamin, crítico como era, defendia radicalmente uma mudança em como observamos e analisamos as histórias das histórias. Sendo assim, “escovar a história a contrapelo” é ir de confronto com as histórias ditas “oficiais”, lineares e progressistas, questionando a própria história, e trazer à tona uma nova perspectiva, não mais dos vencedores. Portanto, buscando fazer uma história a contrapelo, trarei o mais novo texto da coluna Escavando História baseado na minha pesquisa de monografia, ainda em andamento, intitulada “Mulheres Indígenas: correrias e (re)existência na Amazônia sul ocidental”.
Portanto, o que proponho na pesquisa é uma leitura mais crítica e inclusiva da historiografia acreana, a qual sempre buscou realizar uma análise e leitura de uma história do Acre bela e heróica, apagando a história amarga, principalmente os genocídios, abusos e captura de mulheres e crianças indígenas, durante a expansão e o extrativismo da borracha no Estado, principalmente nos processos os quais ficaram conhecidos como “As correrias”. Além disso, destacar essas mulheres como protagonistas da historiografia da Amazônia Sul-Ocidental é desafiar a falácia da ausência de mulheres na Amazônia. Essa suposta falta de presença feminina revela, na verdade, que as mulheres indígenas não eram reconhecidas como mulheres ou até mesmo como seres humanos.
Segundo Gerson Albuquerque, professor Titular da Universidade Federal do Acre, afirma: “uma escrita da história na Amazônia acreana que apagou a multiplicidade cultural, linguística, ambiental, étnica e social dessa região é algo que ganha a conotação de desafio” ². É um desafio para o historiador buscar uma historiografia acreana que não tenha um discurso que enaltece a importância dos ditos “civilizados” na região, apagando a história dos povos originários que habitam essas terras. Com isso, destacam-se as Correrias que ocorreram no território do Acre, por volta do século XIX, mas que ainda são presentes na sociedade atual, visto que é comum nas famílias acreanas a presença ou conhecimento de algum parente que participou ou foi capturado nas correrias. Principalmente as mulheres indígenas, as quais representaram um ponto crucial na formação do Estado.
Porém, para darmos início a essa discussão, é fundamental contextualizar de forma geral o que seria as Correrias?
Com a ocupação do território pelos caucheiros peruanos, seringalistas e seringueiros brasileiros por causa da exploração da borracha, os povos originários foram vistos como empecilho para implantação dos seringais. Com isso, as chamadas Correrias foram organizadas pelos seringalistas para expulsar e/ou dizimar os povos indígenas dos territórios que os patrões desejavam ocupar para exploração do látex. Não tem uma data exata de quando se iniciou as Correrias, mas na década de 1870 a 1880 a região do Purus estava povoada por não indígenas. Colocando dessa forma, aparenta ser uma simples expulsão, mas as correrias vão além. Segundo Ernesto Martinez Rodriguez (2016) “ […] Correrias é na verdade, o fato de que constituíram genocídio aos povos indígenas que habitavam as áreas de interesse para a indústria da borracha e serrarias. Foram submetidos a violência extrema, física, moral e cultural, resultando o desaparecimento de várias etnias de povos tradicionais”³ (2016,p.77).
Cena de uma Correria segundo o testemunho do padre francês Constant Tastevin (1925)

A matança desses povos foi facilmente justificada, eles não eram vistos como seres humanos, mas como animais sem alma que estavam ocupando uma terra que deveria estar vazia. Essa leitura é amplamente fortalecida pelos relatos do Castello Branco (1952) ⁴, onde na obra “Gentio Acreano” diz: “Tinha-se o índio como um animal prejudicial e maléfico, incapaz de ser civilizado, pensamento, aliás, de pessoas influentes que dirigiram a colonização, porém, ignorantes, incapazes de tomar no momento outra direção, principalmente, por encontrarem alguma resistência na ocupação da terra, a qual só poderia dar o resultado verificado, a quase exterminação dessa gente” ⁵. Perceba que, o mesmo descreve o indíegena como um ser mau, incapaz que está atrapalhando o desenvolvimento somente pela sua existência. Além disso, Castello Branco ainda complementa que os indígenas resistem à ocupação de suas terras, essas resistências, eram atacando casas dos patrões ou barracões roubando utensílios, ferramentas e queimando as casas. Porém, ele culpa o extermínio das populações indígenas devido às resistências, sendo totalmente contraditório, pois devido ao extermínio por parte do colonizador, ocasionou na luta pela terra e pela vida indigena.
Dito isso, os que sobreviveram às correrias tiveram que fugir das terras e entrar mais fundo na floresta e outros foram “amansados”, termo utilizado quando aquele ou aquela indígena era proibido de praticar seus costumes e cultura, passando por um processo até de cristianização dos mesmos. Além disso, tiveram sua força de trabalho explorada na extração da borracha, dando origem ao conhecido “seringueiro”. Entretanto, ao cunhar esse termo aos indígenas trabalhadores nos seringais, os mesmos passaram por outro apagamento, deixando de existir como povo indigena, além de sofrerem grandes processos de aculturação dos seringais.
Mulheres Indígenas e a Violência Sexual: Romantização e Invisibilidade Histórica
De certo, como já supracitado, dentre os sobreviventes das correrias eram amassados e colocados para trabalhar dentro das colocações de seringa e, principalmente, mulheres e crianças indígenas, tomadas com “troféus” e muitas vezes eram comercializadas ou dadas de presente para seringueiros. Portanto, o famoso ditado acreano “pega no laço” nada mais é do que a romantização do sequestro e o estupro das mulheres indígenas, onde ainda tiveram sua historiografia de luta e (re)existencia apagada e romantizada. As obras encontradas citando as mulheres indígenas são produções que destacam enaltecer os ditos conquistadores, sendo assim, faz-se necessário alertar que as análises identificadas das obras são representações do que seria mulher para esses autores e para uma sociedade que os homens dominavam.
Ademais, em muitas das obras, relatórios e demais escritos, o uso da mulher como troca aparece constantemente, pois a figura feminina para o colonizador é um mero objeto, seus corpos são compreendidos apropriados para atos sexuais. Por isso, é fundamental questionar as representações história heróica e oficial, uma vez que as mulheres indígenas frequentemente foram apresentadas como corpos sujeitos à violência sexual, ao trabalho nas residências dos seringalistas, a casamentos compulsórios e à função reprodutiva. Assim, mulheres indígenas foram subjugadas de forma semelhante às mulheres brancas devido à inferiorização de gênero, no entanto, as indígenas enfrentaram um sofrimento adicional, pois não eram reconhecidas como seres humanos.
Por fim, assim, à luz do que foi apresentado até agora, afirmo que o pesquisador da história deve ser visto como um dos principais adversários das narrativas “oficiais”, das chamadas “grandes verdades” e das figuras consideradas “heróis”. Ele deve incessantemente criticar o próprio trabalho, ou seja, a própria história. Portanto, é preciso ser como um imenso elefante na sala, provocando desconforto! Dessa forma, assume o papel de alguém “incômodo”, que irá “desmentir” verdades, questionar o que se considera conhecimento e desconstruir as narrativas moldadas por interesses. Seu objetivo principal é confrontar esses interesses.
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[1] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história, 1940. Disponível em: http://www.proibidao.org/wp-content/uploads/2011/10/Sobre-o-conceito-de-historia_Walter-Benjamin.pdf. Acesso: 4 de nov. de 2024.
[2] DE ALBUQUERQUE, G. R. História e historiografia do Acre: notas sobre os silêncios e a lógica do progresso. TROPOS, v.1, 2015.
[3] RODRIGUEZ, E. M. Correrias: Índios, Caucheiros e Seringueiros (Acre 1942/1983). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, 2016.
[4] CASTELO BRANCO, J. M. Brandão. “O Gentio Acreano”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Vol. 27, abril-junho, 1950.
Dandara Cesar Dantas – Acadêmica do 8º período de Bacharelado em História da Universidade Federal do Acre (Ufac). Membro/ redatora da coluna Escavando História e bolsista do Programa de Iniciação Científica (Pibic), com o projeto intitulado: Entre Ensino e Pesquisa: diários de memória da História na Ufac.