Foto: II Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, em setembro de 2021. Imagem de Rafael Vilela. Fonte: Greenpeace Brasil.
Quantas vezes escutamos pessoas falarem: – Não existe racismo no Brasil!
Quantas vezes escutamos falar: – No mundo não existem raças, mas apenas uma raça, a humana!
Quantas vezes escutamos falar que, a despeito da raça humana ser a única, o Brasil é formado pela conjunção de três raças, a europeia, a indígena e a africana!?
Quantas vezes escutamos falar que, por todos estes motivos acima descritos, falar em racismo no Brasil é completamente descabido uma vez que vivemos em uma democracia racial mestiça!
Se você, que continua a ler este texto e concorda com todas as afirmações acima, bem-vindo: as linhas abaixo foram escritas para você!
Ao longo do tempo, os milhares de povos que residiram no território que hoje conhecemos como Brasil constituíam no ano de 1500, segundo diferentes estimativas, uma população de pelo menos 2.500.000 pessoas que falavam entre 600 e mil línguas diferentes. Antes de 1500, a arqueologia indica que nossos antepassados, em solo “brasileiro”, teriam vivido uma infinidade de histórias ao longo dos cerca de 50 mil anos precedentes à chegada dos conquistadores europeus, tempo no qual culturas e povos apareceram e desapareceram, sociedades se formaram e se juntaram a outras, domesticaram plantas e animais, conviveram com a natureza e aprenderam a tirar dela o sustento necessário para viver material e espiritualmente. No transcurso desses milhares de anos, ocuparam aqui e ali cada cadinho do nosso atual território nacional.
Se, depois de 1500, o extermínio dos povos originários se transformou em uma prática corrente, redundando na redução brutal do número de originários-descendentes, esse genocídio não foi total pois é estimado que hoje ainda tenhamos ao redor de 900 mil pessoas autodeclaradas indígenas, falando 154 línguas no país!
Antes da chegada de pessoas advindas da Europa, da África (milhares de pessoas africanas submetidas à escravização) e de outros continentes, em condições muito diversas, os povos que aqui viviam não conheciam nenhuma referência a qualquer eventual “raça indígena”, até porque cada povo mantinha vínculos estreitos com a sua cultura, seus modos de viver, sobreviver, significar o sagrado, reproduzir-se, relacionar-se com seus antepassados.
A existência de milhares de línguas indicava a convivência de “milhares” de povos, culturas, mas nunca uma “raça” indígena.
Essa diversidade de povos/culturas continuou a existir ao longo dos séculos, mas, com a chegada dos colonizadores, sofreram algumas mudanças fundamentais, longínqua origem do racismo em relação aos descendentes dos povos originários. Os europeus ao se depararem com os habitantes dessa terra-Brasil e imbuídos da firme intenção de explorá-la, extraindo da mesma a riqueza que pudessem tirar, propriamente “inventaram” os indígenas, posto que, assim passaram a chamar todos aqueles que eram naturais deste pedaço do mundo: indígena passou a ser todo aquele que, antes dos europeus, aqui viviam.
O termo indígena, ademais de ser uma palavra que inventava uma identidade onde preexistia a diversidade, implicava criar todo um conjunto de significados que explicitava a ideia de inferioridade, de incivilidade, de barbarismo, de subordinação dos povos originários e seus descendentes aos colonizadores.
Mesmo que ao longo do período colonial brasileiro não existisse o conceito de raça ou de hierarquia racial, tal como ele existirá nas últimas décadas do século dezenove (mais ou menos em 1850 em diante), tinha vigência e força a noção de que a sociedade era hierarquicamente estruturada, sendo que às pessoas originárias-descendentes era destinado um lugar considerado inferior, classificadas como incivilizadas. Isso é claro, partindo do olhar das elites colonizadas brasileiras.
Os países ditos euro-civilizados passaram a se servir de uma nova ideologia – a do racismo – para reestabelecer antigas hierarquias sociais, políticas, econômicas, de gênero e culturais, que haviam sido abaladas pelo surgimento das ideias de igualdades entre os humanos, então vigentes no contexto das revoluções contra as monarquias absolutistas desde 1789 e a lembrada Revolução Francesa. O mundo, a sociedade e as culturas passaram a ser racializadas e, logo, re-hiearquizadas sob uma nova roupagem: a das raças. A partir de então, os países poderosos passaram a definir e classificar o lugar de cada cultura e sociedade dentro de critérios raciais.
A ideologia racial espalhou-se pelo mundo e foi sendo reinterpretada segundo cada contexto e conveniência das elites de cada lugar.
No Brasil, atravessado por séculos de uma sociedade escravista, patriarcal, preconceituosa e machista, a racialização promovida fortemente com o fim da escravidão, em 1880, teve a função de materializar a discriminação das, já então inventadas “raças inferiores”, dentre as quais aparecia a “raça indígena”.
Serem considerados inferiores implicava, para os povos originários-descendentes, ficarem apartados do mundo dos direitos, sendo-lhes imposto toda sorte de violências, abusos, explorações, escravização, desterramento, genocídios e diásporas dentro do território nacional. Os diversos povos, então chamados indígenas, recebiam nos ombros o pesado conceito de “raça inferior”, de “raça” que impedia o Brasil de se tornar uma suposta civilização.
A conversão de milhares de línguas e povos originários-descendentes, em “raça indígena”, e como “raça inferior” serem qualificados como empecilho ao desenvolvimento do Brasil, fez com que aos diferentes povos recaísse práticas racializadas que os violentava, privou-os de seus territórios, legitimava assassinatos, classificava-os como inaptos a tomarem decisões e se governarem, a, enfim, conduzirem os seus destinos por si próprios.
O racismo aos quais foram e continuam sendo submetidos os diferentes povos e pessoas autodeclaradas indígenas impede-nos de afirmar que não existe racismo no Brasil; impede-nos de dizer que o Brasil foi, em algum tempo, uma “democracia racial”; impede-nos de afirmar que somos frutos de “três raças”. O racismo que atravessa as relações sociais e de poder exige de cada um de nós o combate para que possamos, um dia, quem sabe, dizer: não existe racismo no Brasil!
Mas, enquanto o racismo continuar a atravessar o nosso dia a dia e estiver entrelaçado nas estruturas que constituem nossa realidade, necessitamos construir relações antirracistas em favor da igualdade racial.
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Para saber um pouco mais sobre os diversos povos indígenas atuais acesse:
https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal
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Eduardo Silveira Netto Nunes
Pesquisador do NEABI-UFAC
Docente de História/CFCH-UFAC
Doutor em História Social