Por Bruna Carolini Barbosa
O que é intelectualidade? Uma busca rápida em um dicionário irá apresentar duas breves definições: qualidade, caráter ou natureza do que é intelectual; faculdade de compreender; inteligência, intelecto. Ao buscar a palavra intelectualidade no Google Imagens, nos deparamos com uma série de imagens de cérebros e as poucas imagens de seres humanos têm algo em comum: a cor. Todos os intelectuais representados imageticamente são brancos.
Um breve exercício: se você fosse convidado para uma entrevista espontânea enquanto estivesse passeando pelo centro da cidade e o entrevistador te perguntasse o nome de algum intelectual negro, você saberia responder? Em um primeiro momento, pode parecer que falar sobre intelectualidade é algo que não se relaciona com a nossa experiência em sociedade. No entanto, esta questão está muito mais próxima de nossas vidas do que podemos imaginar, como este texto pretende mostrar.
A suposta simplicidade da significação da palavra “intelectualidade” é contestada pelas imagens, que refletem um imaginário social que racializa a questão. A racialização, refere-se ao processo pelo qual se atribuem significados raciais a determinados grupos sociais através de seu fenótipo, ou seja, aquilo que é visível aos olhos. Nesse sentido, o que se entende por intelectualidade bem como sua representação não ideários naturais, mas uma construção em que pessoas negras são invisibilizadas e apagadas.
A representação da inteligência, da faculdade de compreensão, daquele que é capaz de refletir e pensar as questões mais complexas é ideologicamente orientada pela racialidade. Não poderiam os corpos negros pensar? Estariam os corpos negros destinados exclusivamente ao trabalho braçal? Como desconstruir essa ideia preconcebida pelo racismo?
Há algumas possibilidades de adentrarmos nessa discussão, uma delas é a partir da compreensão da intelectualidade negra. Para isso, retomo aqui um conceito de intelectualidade proposto por Milton Santos, intelectual negro, geógrafo, escritor, advogado, jornalista e professor universitário. Segundo ele, “o intelectual existe para criar o desconforto”. Uma outra definição de intelectualidade, proposta pela pensadora Patrícia Hill Collins, entende a intelectualidade negra como uma produção de resistência frente ao apagamento do racismo estrutural e institucional.
É possível perceber que a produção de conhecimento pela intelectualidade negra é uma ação indispensável para o combate ao racismo. Ainda, o conhecimento produzido por pessoas negras amplia as agendas de pesquisa, traz à tona questões invisibilizadas pela branquitude e pela ciência que, por muito tempo, tomou o corpo negro apenas como objeto de estudo. Para este nosso diálogo, quero propor a reflexão sobre o caráter agentivo da intelectualidade e, para isso, quero retomar algumas ideias de um intelectual que, infelizmente, nos deixou no início deste mês: Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo.
Nêgo Bispo foi um líder quilombola, ativista político, filósofo, poeta, escritor, um intelectual agentivo, um dos maiores do Brasil. Com uma vasta produção, contribuiu de modo inestimável com as Comunidades Quilombolas, com a luta contracolonial e com novas perspectivas para pensar o Brasil. Em um de seus ensaios, “Cupim que vai pra festa de tamanduá”, Bispo argumenta sobre os perigos de se esperar por soluções inclusivas que podem acabar “distanciando das trajetórias e das próprias forças ancestrais dos povos Afro”.
Nêgo Bispo nos faz relembrar que a intelectualidade negra, entendida como agência, como resistência à opressão, fortalece a luta antirracista ao passo que contesta e subverte o imaginário eurocêntrico sobre a intelectualidade. Ao pautar seus interesses, vivências e saberes, pessoas negras redesenham uma ideia de intelectualidade representada pelas mídias, em que a inteligência, a capacidade de pensar e criar conhecimento é um privilégio branco.
Nesse sentido, pensar a intelectualidade não é assunto exclusivo de “acadêmicos”, mas de todos nós. Quanto esse imaginário social eurocêntrico pode ter influenciado e ainda influencia o imaginário e trajetórias de pessoas negras? O quanto influencia no julgamento da intelectualidade negra? São todas preocupações que devem ser coletivas. A intelectualidade negra é teoria, mas é sobretudo ação, é prática diária e, assim sendo, confere espaço de autoria às pessoas negras, a fim de que possam pautar seus interesses e demandas:
“Como os sonhos geralmente terminam quando acordamos…
Vamos nos manter acordados e ao invés de sonhar…
Compor nossos propósitos, movidos por nossas trajetórias e
guiados por nossas ancestralidades…
Temos referenciais históricos para confluirmos[…]”
Nêgo Bispo, presente!
Referências:
COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
SANTOS, A. B. dos. Cupim que vai pra festa de tamanduá. Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v. 30, nº 2, Jul-Dez/2020. p.232-434.
SANTOS, M. O intelectual negro no Brasil. Ethnos Brasil: Cultura e Sociedade – publicação semestral do NUPE – Grupo Negro da UNESP para pesquisa e extensão. Ano I, nº 1, Março, 2002.
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Bruna Carolini Barbosa é docente na Universidade Federal do Acre (Ufac) e membra do Neabi-Ufac. É doutora em Estudos da Linguagem e pesquisadora dos Multiletramentos e Antirracismo no Ensino de Línguas.