O crime organizado germina na ausência do Estado. Mas só pode crescer e se fortificar na presença do Estado, contando com sua conivência direta ou indireta.
Com efeito, para o crime organizado, é fundamental o papel de segregação da população pobre nas periferias da cidade. É neste ambiente, de abundantes misérias e escassas oportunidades, que o crime viceja e encontra farta mão de obra, um batalhão de gente que mata e morre por nada.
Um ambiente propício assim, é forçoso que se diga, não é obra da natureza, coisa que surja espontaneamente, aqui e acolá. Em verdade, é fruto de um descaso deliberado, persistente e sistemático por parte do Estado.
Depois de criadas e robustecidas nesses ecossistemas sociais, as organizações criminosas estão aptas a afrontar o restante da sociedade e até o Estado. Nesse estágio de desenvolvimento, em que possibilitam substanciais vantagens a quem nelas tomar parte, é possível não apenas afrontar as forças policiais, mas até cooptar algumas de suas frações.
A esta altura, o monstro está muito crescido, e mesmo para o Estado e suas forças policiais não é simples o confronto aberto. Ou seja, mesmo a aparente paz depende largamente delas.
Para um justo dimensionamento do problema, vale registrar que a cooptação das forças policiais é apenas uma das frentes em que o crime organizado avança e se articula. Ele também avança na construção de alianças políticas, a fim de ocupar os espaços de poder no Executivo e no Legislativo.
Só assim se configura, de fato, o crime organizado. É quando ele se expande e ramifica, estendendo seus tentáculos em direção a certos setores que lhes são estratégicos. Sua relação com os grupos políticos é, pois, perfeitamente compreensível tanto por sua capacidade de financiamento de campanhas, quanto pela dimensão territorial de seu domínio, o que possibilita, inclusive, influir no voto dos eleitores de dadas regiões. Esse fenômeno é visível no Rio de Janeiro e no Acre, para ficar em apenas dois exemplos.
Para resolver esse problema de grande monta, o senso comum aponta para o recrudescimento das leis e do sistema prisional. Para os partidários dessa visão, é com força que se combate a força. De minha parte, não digo que a força da lei seria inócua contra a lei da força. Claro que não. Ela tem sua importância, obviamente.
É fácil repetir o mantra “bandido bom é banido morto”, como se nele estivesse contida alguma sabedoria. Está na moda. Sei. Mas é, no mínimo, contraproducente pensar e agir assim. Para dizer de um modo simples: há que se atuar nas causas, e não apenas nos efeitos.
Como dito acima, é nos ecossistemas de pobreza e segregação que o crime organizado viceja. É aí que ele prolifera, gozando da liberdade da exclusão e contando com mão de obra farta e gratuita. Em função disso, é necessário que, ao lado da lei e da força, se criem oportunidades que incluam e atraiam os jovens desses ambientes. Nem todos serão convencidos. É certo. Todavia, seguramente, uns tantos trilharão outro caminho.
Por outro lado, devemos nos guardar da ilusão de achar que o sistema prisional que ora temos ajudará a resolver os problemas que ora nos afrontam. Não vai. É preciso dizer de uma vez por todas: o sistema prisional não é um problema para o crime organizado. Na verdade, o sistema prisional é funcional ao próprio crime, funcionado como um espaço seu, ainda que administrado pelo Estado.
Veja-se que o domínio territorial que as organizações criminosas têm na cidade se replica também dentro dos presídios, conformando uma geografia toda particular. E não é exatamente isso o que significa a divisão dos presídios em alas, de acordo que as facções aí presentes?
Ora, além de não impedir que os líderes criminosos continuem dando as ordens de seu interior, o sistema prisional ainda cumpre outra função nada desimportante, qual seja, a de servir ao aliciamento e à qualificação de mais e mais criminosos. Como diz o vulgo, e com toda razão, hoje as cadeias são verdadeiras escolas do crime. Escolas compulsórias, frise-se. Uma vez nelas, mais chances de sobreviver têm aqueles que aderirem a alguma das facções existentes.
Em razão da importância que as fronteiras têm para o tráfico que praticam, a tendência é que as facções radicalizem em seus confrontos, disputando a ferro e fogo cada palmo desse chão. Para tanto, buscam recrutar toda e qualquer alma viva para as fileiras de seus exércitos do crime. Notícias várias informam que nem mesmo os povos indígenas, em seus territórios, estão imunes à força do assédio.
O governo federal tem seus planos de combate ao crime, nos quais a Amazônia tem lugar de destaque. É de se lamentar, no entanto, que o governo local tenha por costume levar as coisas como se nada estivesse acontecendo, dormindo no ponto. Em razão de sua passividade e trapalhadas, resta-me dizer que muito ajudaria se, pelo menos, não atrapalhasse.
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Israel Souza é professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).