Para compreender a questão racial brasileira e a estrutura enraizada do racismo em nossa sociedade, é importante partir da Democracia Racial descrita pelo Sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900 – 1987) a partir dos anos de 1920. Freyre foi um dos baluartes em entender a formação de nossa identidade nacional a partir da famosa mistura de raças, a qual defendia que o que se tem de mais legitimo em nossa formação de identidade é a miscigenação.
Defendendo a ideia de um Brasil que soube valorizar a diversidade da constituição étnica e social, construindo um país não como extensão de uma continuidade de tradições europeias, mas uma nação de mistura étnica peculiar de grandes matrizes. O autor partia de uma visão revolucionária na época, a qual reconhecia e defendia a ideia de construção de um país a partir de uma mistura de raças (mouros portugueses, africanos e povos indígenas da américa) e apostava na visão de um Brasil mestiço e diverso etnicamente.
Em sua obra Casa-grande & Senzala: senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, (1933), Freyre nos direciona a compreensão de um Brasil constituído a partir da institucionalização da Família Patriarcal como a instituição social fundadora, com papéis sociais, religiosos, econômicos e políticos definidos, colocando o colonizador português, como marco na construção do Brasil.

A influência da teoria Freyriana no Brasil dos anos de 1930, é marcada por uma literatura que oculta o racismo existente em sua época e ao mesmo tempo passou a enaltecer a socialização e uma aproximação pacifica e harmoniosa entre brancos e negros, no que o autor chama de espaços de sociabilidade.
Importante observar que Freyre aponta em suas teorias uma crítica às teorias racialistas europeias da primeira metade do século XX, construindo bases para uma “Teoria racionalista”, na qual afirmava que a miscigenação era a causa de inferioridade do povo, ou seja: a raça de um povo era um sinal de hierarquização diante da sociedade em que estava inserido. Levando em consideração a política, os intelectuais da época e a relação destes com a miscigenação do povo, podemos considerar que suas táticas objetivavam a diminuição da presença africana e indígena na população brasileira, considerada a “Purificação racial” ou o “embranquecimento”. Entretanto, Freyre considerava que a mistura racial é o que há de legítimo e genuíno no seu modo de ser, apresentando uma visão positiva da mistura eclética e diversa da formação brasileira.
Em outras palavras, a teoria de Freyre, que reforçava a ideia positiva de miscigenação, acabava por “esconder” a existência do racismo no Brasil, ao mesmo tempo em que possibilitava que o Estado continuasse a implementar as políticas de embranquecimento através do genocídio da população negra e indígena no país.

O conceito da democracia racial apresentado por Freyre, apesar de ele não utilizar o termo em sua literatura, foi adaptado ao longo de sua obra, o que acabou encontrando eco para outros estudiosos popularizaram o termo. Freyre comentou que vários fatores, o que incluíam as relações estreitas entre os senhores e escravos antes da emancipação legal dada pela Lei Áurea, e o caráter do imperialismo Português impediu o surgimento de categorias raciais rígidas.
Freyre argumentava que a miscigenação continuada entre as três raças (os indígenas ameríndios, os descendentes de escravizados africanos e os descendentes dos brancos europeus), levaria a uma “meta-raça”. O que se tornaria uma fonte de orgulho nacional para o Brasileiro, que constituiria o Brasil como um país que aceitava as diferenças, e que apesar da escravidão, o racismo e os problemas decorrentes a ele seriam ocultados. O que fez com que, a democracia racial se tornasse aceita entre a academia brasileira da época.
Um olhar crítico acerca do conceito criado e difundido na sociologia Freyriana, nos leva a compreender que a distorção criada pela democracia racial continua impregnada em nosso cotidiano, dando força àquelas ideias de que “somos todos seres humanos” (quando, na verdade, todo mundo reconhece e percebe a existência do racismo tanto no cotidiano da população, quanto na estrutura e funcionamento das instituições brasileiras), pois as manifestações de racismo e de inferiorizarão de traços oriundos de África e dos povos indígenas continua a ser uma realidade, seja ele negando-as ou através de apagamento simbólico de traços culturais ao normalizar praticas veladas de racismo no nosso cotidiano.
Importante ressaltar, que pela democracia racial Freyriana, aspectos da cultura africana passaram a ser absorvida como elementos da identidade nacional brasileira, a partir do momento em que figuraram dentro de uma cotidianidade de nossa cultura, culinária e da religião, porém entendemos que a ideia de democracia racial e de convivência harmoniosa entre as raças no Brasil não passa de um MITO, como classifica Florestan Fernandes, Kebengele Munanga e outros estudiosos, pois oculta as relações de dominação existente na sociedade brasileira escravocrata, que ainda sobrevive de maneira constante no imaginário de nossa sociedade atual.
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BRIGGS, Asa. Gilberto Freyre e o estudo da história social. In: Gilberto Freyre na Universidade de Brasília: conferências e comentários de um simpósio internacional realizado em Brasília de 1980. Brasília: Ed. da UNB, 1981. 27-41 pp.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 30 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995
FREYRE, Gilberto. Sobrados & Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 5. ed. Rio de Janeiro: J.Olympio; Brasília: INL, 1977b.
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Luciney Araújo Leitão é natural de Itacoatiara/AM. Professor EBTT de Sociologia na Universidade Federal do Acre. Atua na área de ensino/pesquisa e extensão no grupo GESCAM/UFAC, NEABI/UFAC e Diálogos UNSL/RO. Cientista Social, estuda religião de Matriz Africana (candomblé de Angola) e suas relações de dominação e estruturação. É colaborador da revista eletrônica latino-americana Armadeira Cultural, e do grupo SetorNorte. É autor de capítulos de livros e artigos publicados em periódicos e anais.