Nela, cristalizou-se a concepção mais ampla e mais diversa de cidadania já formulada entre nós. Daí a justeza de seu epíteto: cidadã. Complementarmente, ela encarnou todos os esforços e esperanças democráticos que estavam em ebulição ao fim da ditadura militar (1964-1985).
A quadra histórica de seu surgimento e a correlação de forças então estabelecida entre os defensores da ditadura e os defensores da democracia marcarão indelevelmente sua trajetória futura, pendendo sobre sua cabeça como uma espada de Dâmocles.
Questão deveras inquietante é que ela nunca correu tanto em risco quanto em seus primeiros dias e nestes dias correntes, ameaçada praticamente pelos mesmos agentes: os fautores da ditadura.
Antes de avançar, será oportuna uma digressão sobre como as constituições surgem na história como uma forma de regular, pela lei, os usos do poder.
Em sua ascensão, a burguesia, classe dominante no capitalismo, compreendera que precisava do Estado – certos liberais nunca vão entender ou reconhecer isso -, mas não poderia ficar refém dos caprichos de quem o estivesse conduzindo em cada momento. A criação de um corpo de lei, onde estivessem determinados os limites e as funções do Estado/governo, foi a saída encontrada.
Independentemente de quem estivesse à testa do poder estatal, já estava determinado – no grau em isso é possível -, a priori, o que fazer e como fazer. Assim, via regulação jurídica, a força da lei se contrapunha e submetia a lei da força. Aparentemente, o direito conteria o poder. A isto, convencionou-se chamar de constitucionalismo.
Tudo isso, porém, vale dizer, tem validade apenas em tese. As lutas políticas, como sabemos, têm sempre um quantum de imprevisibilidade. Numa sociedade marcada por expansivas opressão e exploração, como a capitalista, tais lutas tendem a assumir traços explosivos.
Em razão disso, a depender das condições dessas lutas, caso ameacem o domínio e os interesses mais prementes da burguesia, ela mesma pode lançar pelos ares o texto constitucional, no todo ou em parte. E é essa a razão para que, vez ou outra, as classes dominantes, para se manterem como tais, optem por substituir a força da lei pela lei da força. A opção por uma ou outra é ditada pelas circunstâncias, e nunca por zelo ou aversão. Cálculo, mais que afeto.
Ora, além do clima da Guerra Fria, esse foi um dos fatores que desencadearam o golpe que se estendeu por mais de duas décadas entre nós. É forçoso assinalar que, sozinhos, os militares jamais teriam operado e sustentado tal golpe. Para isso, contaram com o apoio de parte da burguesia que, vendo seus adversários chegarem ao poder por vias constitucionais, resolveu agir, sem pudores, por vias inconstitucionais.
Por isso, foi com razão que os cientistas sociais passaram a falar em golpe civil-militar, e não mais, como se fazia antes, em golpe militar apenas. Decerto que nossas Forças Armadas – o Exército principalmente – têm um histórico desabonador. Mas é igualmente certo que, via de regra, elas foram encorajadas e usadas pela classe dominante brasileira em suas aventuras golpistas e sangrentas.
Mudando a conjuntura e a correlação de forças, o regime ditatorial ficou contraproducente e insustentável. A economia estava em frangalhos. Nestas circunstâncias outras, era forçoso ceder à pressão por democracia. Espertinha por demais, a classe dominante fez parecer que toda culpa pelo estrago era das Forças Armadas, e só delas.
Como sabemos, ainda assim, no período em que surgiu a orientação para a “abertura democrática”, um grupo de militares radicalizados rebelaram-se contra a ideia. Para estes, a abertura não deveria ocorrer e, em função da “ameaça comunista”, deveríamos viver em uma eterna ditadura. Nesta perspectiva, a lei da força deveria prevalecer em face da força da lei, ad aeternum. É provável que eles acreditassem que o Exército mandava em tudo sozinho, que ele se bastava. Ora, ora…
Nesta sanha ditatorial, chegaram ao ponto de promover atentados terroristas. Pretendiam culpar os partidários da democracia e assim garantir a permanência do sistema autoritário. Apesar de todos os seus esforços, foram derrotados. A democracia veio e a Constituição de 1988 a consolidou.
Todavia, como salientamos em texto recente, os traumas da ditadura não foram tratados e resolvidos. A anistia, conforme concebida e operada, livrou assassinos e torturados das penas de seus crimes. Ausência perniciosa, os empresários que apoiaram o regime quase não aparecem nos relatos, nos noticiários, nos processos…
Sem serem devidamente exorcizados, os fantasmas da ditadura continuaram a vociferar entre nós, com a desenvoltura e a leveza de quem faz piquenique. Então, num momento oportuno para eles, viram-se fortalecidos. Saíram às ruas. Ergueram faixas e cartazes exaltando torturador. Compuseram um governo mais militarizado do que os do período ditatorial. Ocuparam as frentes de quartéis reivindicando golpe militar. Promoveram atentados terroristas. A história se repetindo como farsa, como dizia Marx.
Em suma, em nome da democracia, os fautores da ditadura tentaram assassinar a democracia. Reivindicando amparo constitucional, tentaram submeter a força da lei à lei da força. Foi exatamente isso o que fizeram ao recorrer ao afamado Art. 142 da Constituição que, na cabeça deles, sustentaria uma intervenção militar.
Sem surpresa para os que conhecemos a história, setores da classe dominante tomaram parte no bloco golpista, com os agrocratas na linha de frente. Depois, parte deles resolveu se afastar e tomar outro rumo, como que caindo em si e percebendo o alto preço a ser pago pelas trapalhadas e arroubos autoritários daquele(s) que os conduzia(m).
Desse modo, nossa Constituição chega aos seus 35 anos sob forte pressão e ameaças várias. É verdade que seus inimigos não prevaleceram. Não dessa vez. Mas é igualmente verdade que estão organizados e fortalecidos como poucas vezes se viu.
Uma das muitas provas disso é que, em sessão recente da CPMI dos atentados de 08/01, um militar de alta patente foi atacado e humilhado por um senador bolsonarista. O motivo? O militar faz parte do grupo que se negou a encampar o golpe pretendido (mas negado) pelos extremistas. Dentro do Congresso, um parlamentar, em sessão pública e televisionada, defende um golpe, o fim do regime democrático.
Isso não é coisa que se possa ignorar ou menosprezar. Os inimigos da democracia, de dentro de um espaço oficial muito simbólico, vociferam contra ela. E não é certo que eles serão devidamente penalizados por isso.
Mais que nunca, é preciso vigilância e organização. E sobretudo é preciso entender que, em que pese toda a importância da força da lei a regular e submeter a lei da força, não é a letra fria de uma constituição que pode criar e sustentar uma vivência realmente democrática. Antes, ao contrário, é uma vivência realmente democrática que pode criar e sustentar uma constituição. Mais que letra, a democracia é vida e luta popular.