Compreender e aceitar a construção étnico-racial no Brasil é um exercício constante de desconstrução da imposição de uma cultura europeia imposta através de um processo violento de apagamento dos traços nativos e de nossas raízes indígenas. Como descreveu o antropólogo João Pacheco de Oliveira: o Brasil é um país constituído dentro da repressão, a mais absoluta, e até as relações intrafamiliares são marcadas pela violência.
O Brasil do Cocar foi sistematicamente excluído e subjugado por diferentes formas de poder ao longo do tempo, seja através da violência simbólica, seja pela imposição de uma fé, pela exploração e expropriação de suas terras e recursos naturais, pela imposição de costumes, até pela invisibilidade em nossa história oficial, afinal, para alguns, só lembramos dos povos originários no dia 19 de abril
Em Parintins, cidade localizada no Estado do Amazonas, no mês de junho, a tradição indígena é cantada e exaltada durante o ápice da ópera cabocla amazônica, pois falar do indígena, é exaltar nossas raízes. O arte educador Eriky Nakanome (2017), apresenta a ópera parintinense, como um marco cultural caboclo, local em que o amazônico tece sua identidade regional e a introdução do indígena no enredo recaracterizou a brincadeira folclórica, cantando e contando seus rituais, cosmologias e especificidades, acima de tudo, servindo de eco para a luta dos povos originários
Essa exaltação ao Brasil indígena foi cantada durante o Festival Folclore de Parintins em 2022, na terceira noite de espetáculo, o Boi Garantido cantou e teatralizou a resistência indígena na toada Pátria Indígena – Mãos Vermelhas de Ronaldo Barbosa Júnior cantando em versos etnológicos, o orgulho nativo amazônico em seu tema A Amazônia do Povo Vermelho, exaltando a diversidade, a ancestralidade, a quilombolidade, o indigenismo e a caboclitude que constroem a Amazônia e o Brasil
A pátria Indígena, a pele indígena, o nome indígena, ecoada por todos que lutam pela causa indígena, nos leva a refletir que a luta dos povos originários do Brasil é uma luta de todos nós, e inspira a todos a rever o quão doloroso e cruel foi o processo de colonização do nosso país.
Atualmente, a luta dos povos indígenas passa pela garantia de seus direitos, pela preservação de suas culturas e tradições, passa também pela desconstrução do senso comum repetido em nossa sociedade de que o indígena é insolente e preguiçoso, daquele mito do incapaz, de que lugar de “índio” é na floresta e não nos centros urbanos. E sim, o espirito indígena, Luta! é uma causa que deve ser abraçada por toda a sociedade.
No Brasil pós Lei 11.645/08, que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena em toda a Educação Básica, testemunhamos o florescer do Brasil do Cocar. O mito do incapaz vem a cada dia sendo desconstruído e substituída pelo olhar indígena nas escolas. Na literatura, as vozes indígenas ganham cada vez mais força, e a afirmação da identidade indígena é a cada dia fortalecida, pois, como descreve Julie Dorrico: Não há fronteiras para o pertencimento
A luta indígena ganhou e vem ganhando cada vez mais visibilidade. Temas que antes estavam ocultos e bandeiras de lutas como a preservação ambiental, a justiça social e a demarcação fazem parte de temáticas hoje debatidas em nossa sociedade.
Ao assumir que a causa indígena é de todos nós, buscamos reescrever nossa história e valorizar a cultura, a tradição e as lutas vivenciadas pelos povos originários, tirando da invisibilidade os verdadeiros donos desse chão, os povos indígenas.
Portanto, defender a causa indígena e assumir nossas mãos vermelhas é uma luta que diz respeito a todos nós brasileiros, independentemente de nossa origem étnica, classe social ou nível de escolaridade. É urgente ouvir as vozes dos povos indígenas e apoiar suas lutas pelo reconhecimento de seus direitos e pela construção de um Brasil cada vez mais justo e inclusivo.
As mãos vermelhas, a marcha de cores e cocares também são armas, assumimos nossas tinturas e declaremos: o espírito indígena herdado em você irá despertar! Luta!
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DORRICO, J. Eu sou Macuxi e outras histórias. Ibirité/MG: Caos e Letras, 2019.
GARCIA, E. F.; OLIVEIRA, J. P. O nascimento do Brasil e outros ensaios:” pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades/O nascimento do Brasil e outros ensaios:” pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Tempo-Revista do Departamento de Historia da UFF, 24(1), 180-185, 2018.
JUNIOR, R. Barbosa. Pátria Indígena (Mãos Vermelhas). In: Boi Garantido: Amazônia do Povo Vermelho. Manaus, 2022
NAKANOME. E. S. A representação do Indígena no Boi Bumbá de Parintins. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 2017
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É natural de Itacoatiara/AM. Professor EBTT de Sociologia na Universidade Federal do Acre. Atua na área de ensino/pesquisa e extensão no grupo GESCAM/UFAC, NEABI/UFAC e Diálogos UNSL/RO. Cientista Social, estuda religião de Matriz Africana (candomblé de Angola) e suas relações de dominação e estruturação. É colaborador da revista eletrônica latino-americana Armadeira Cultural, e do grupo SetorNorte. É autor de capítulos de livros e artigos publicados em periódicos e anais.