Por Ian Costa Paiva
A região que atualmente denominamos como Acre, banhada pelas águas de seus rios, como o Purus, Envira, Breu, Muru, Jordão e tantos outros, possui vastas riquezas cosmológicas ancestrais e identitárias as quais estão presentes nos mais diversos modos de vida da região, seja pelas populações que produzem e reproduzem culturas entre as unidades de conservação de proteção permanente, como nas reservas extrativistas que contemplam o estado do Acre, quanto nas suas formas de sustento a partir de um uso agroflorestal das mais densas vegetações entre varadouros e estradas de seringa, ou pela força da cura ancestral e cultural dos dezesseis povos originários que (re) existem em meio às florestas e às cidades deste estado.
Ao abordar a amplitude de práticas relacionadas à cura espiritual e física com medicinas naturais, como ervas curandeiras, frutos e raízes de plantas provenientes dos manejos estabelecidos por essas múltiplas identidades, sobretudo atreladas às crenças dos povos originários, tendemo-nos, antes de tudo, rechaçar toda e qualquer forma de manifestação de curandeirismo amazônico, de modo a olharmos com parâmetros ao que se pronuncia contrário em relação à medicina “moderna”. Aliás, a medicina não indígena, envolvendo medicamentos químicos, posta neste espaço cientificista, tende a anular as demais práticas de cura dessas muitas outras populações, bem como os medicamentos ancestrais que estão atrelados às práticas.
Este elemento de sobreposição em relação a um dito espaço “científico”, fazendo com que as demais sociedades não indígenas enxerguem as práticas de curandeirismo, ainda como as medicinas que dão sustento às curas como algo pejorativo, já que está totalmente atravessado pelos tentáculos da colonialidade que nos foram impostos por inúmeros instrumentos históricos de dominação utilizados através de fenômenos como o exercício de uma educação catequista que invadiu as florestas, com o principal objetivo de “livrar” sujeitos indígenas da “ociosidade”, da “preguiça”, “indolência”, ainda como os levar ao caminho de uma suposta verdade inventada e introduzida para o caminho do paraíso embebecido por uma lógica de domínio cristão. No dizer do professor José Paulo Kaxinawá, da terra indígena do Alto Purus:
Isso está acontecendo por causa do evangelho do nawá, através do padre e do pastor. Por isso estou preocupado com meu povo. Quero pegar cada vez mais a experiência dos meus amigos professores, para trabalhar junto aos meus alunos e a comunidade do povo Huni Kuĩ. Nós não queremos mais esquecer nossa cultura tradicional como o Nixi Pae, Dume deshke, nixpu pima, txirĩ etc. Por isso devemos deixar a cultura dos brancos. A maioria dos Huni Kuĩ do Purus está usando o hino dos nawa. A igreja não é a cultura do índio. Nós estamos perdendo muito a nossa cultura tradicional, desrespeitando nossos próprios costumes (Kaxinawá, 2006, p.25).
A partir deste e de muitos outros mecanismos de repressão e de autoridade, os detentores dos ancestrais conhecimentos de cura foram paulatinamente cruzados por esse remoto interesse colonialista. Cantos de rezo nos troncos e nas famílias linguísticas acabavam sendo proibidos, para que não somente enfraquecessem as culturas, mas que desta forma, sujeitos donos dos conhecimentos de cura pudessem ter maior disponibilidade de tempo para servir os interesses catequistas de um processo civilizatório da colonização nas regiões banhadas pelo rio Acre. Fenômenos como estes, por exemplo, ainda hoje nos levam a crer que as práticas que nos induzem ao caminho da “moralidade” e da “ética” são somente aquelas que nos foram impostas, de modo a deslegitimar e até criminalizar práticas outras próprias de identidades não cristãs.
Para melhor exemplificar, evidenciarei uma prática de cura própria do povo Huni Kuĩ – povo originário mais populoso do estado do Acre, com 104 aldeias e 12 terras indígenas entre os munícipios de Jordão; Santa Rosa do Purus; Marechal Thaumaturgo, Feijó e Tarauacá, mas que também habita as margens do rio Curanja, no Peru.
O povo Huni Kuĩ, que na língua do tronco Pano Hatxã Kuĩ se traduz por gente verdadeira, desde o princípio de suas existências e resistências consagram incontáveis medicinas, sejam elas em contextos cerimoniais ou não. Na cerimônia de cura envolvendo práticas de cantos sagrados para a consagração, existe o feitio do Nixi Pae – Ayahuasca – que é a junção de duas plantas com valores culturais e simbólicos para o povo, que é a folha da Chacrona e do Mariri as quais aos serem batidas e maceradas em uma superfície rígida, o sumo, com sua forte coloração marrom, é extraído e fervido em uma grande panela e servido em uma data cerimonial para o povo, manifestando o poder de cura, união, alegria, força e ancestralidade, simbolizados através da círculo entre pessoas compartilhando entre si histórias vivenciadas em tempos de outrora, bem como cantos de rezo que, ao decorrer da noite, são conduzidos pelas mais diversas lideranças masculinas e femininas, denominados Txana, que trazem ao povo a força da cura espiritual, ou da miração, do contato com os seres encantados da floresta; entre o dito e o não dito; a conexão entre o corpo e o espírito, ou ainda o contato geracional com Yube – jiboia encantada na língua, a verdadeira dona da medicina.


Práticas de cura como essa, da consagração do chá do cipó, estiveram e estão, até os dias atuais, como meras representações respaldadas em um lugar de subalternidade em detrimento do fortalecimento e da manutenção dos interesses catequistas, fortalecendo preconceitos, narrativas errôneas que ligam as crenças e modos de cura indígenas às meras abstrações de um inferno inventado, invenção discursiva a qual escravizou e escraviza sujeitos, assassina seus saberes e fazeres, impossibilita a perpetuação do aprendizado entre gerações. Portanto, ao ouvirmos falas problemáticas que remetam às medicinas das florestas, bem como seus usos para a cura, devemos, antes de tudo, atribuir posicionamentos críticos que sejam capazes de romper com os estereótipos estabelecidos por uma lógica fundamentalista gerada por um constructo abissal entre bom e mau, céu e inferno, sim e não, estético e não estético. Romper de modo a reconhecer as inúmeras pluralidades ligadas às demais formas de cura.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Amazonialismo. In: ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; SARRAFE, Agenor Pacheco. UWA’ KÜRÜ: dicionário analítico. Rio Branco-AC: Editora NEPAM, 2016.
BANIWA, G. Educação para manejo do mundo. Articulando e Construindo Saberes, Goiânia, v. 4, 2019. https://doi.org/10.5216/racs.v4i0.59074
KAXINAWÁ, J. P. Uma gramática da língua Hãtxa Kuĩ. 2014. 322 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. KRENAK, A. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, A. (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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Ian Costa Paiva – Bacharelando em História pela Universidade Federal do Acre, pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Ufac, eleito coordenador de assuntos estudantis do Centro Acadêmico Pedro Martinello com mandato biênio (2023-2025), membro do corpo editorial da Revista Das Amazônias – revista discente de História da Ufac.