Por Helenayra Moreira do Nascimento
“A riqueza da cultura popular brasileira está na sua capacidade de reinvenção constante, de absorver influências externas e transformá-las em algo genuinamente nosso.” – Manuel Bandeira.
Apesar da tradição junina ter tão forte em si a natureza agrária, esta manifestação permanece viva nos meios urbanos, mesmo que por vezes, com uma visão deturpada de representar o meio rural. O primeiro contato que temos com a quadrilha se dá através da escola, que quando realiza suas festas juninas contribui marcantemente para a formação de uma caricatura da população rural.
Para tratar da cultura popular rural, criaram-se termos como “caipira” e “matuto”, usados, repassados e absorvidos de forma pejorativa para se referir a uma determinada classe social. Percebemos, então, que nas quadrilhas escolares, as crianças, de maneira ingênua, têm suas primeiras noções sobre o homem rural como um ser incondicionalmente pobre, vestido com trapos, de dentes podres e com uma linguagem tosca.

A escola e seu meio de educação tradicionalista caracterizam-se como a primeira instância no processo de banalização de uma manifestação de cultura popular. Quando abordamos o tema “Quadrilha Junina” entre pessoas com uma formação intelectual inclusive razoável, a imagem que as pessoas guardam é justamente a que foi construída no período escolar: uma dança divertida, onde se pode estereotipar personagens rurais e principalmente onde reina o divertimento, deboche e a desorganização. Não podemos esquecer, neste sentido, como os meios de comunicação de massa também agem na elaboração e construção das mensagens a respeito das manifestações populares e em particular da quadrilha junina.
O que quero além disso é chegar aos grupos sociais que verdadeiramente tratam as quadrilhas como um evento de cultura popular como forma de expressão, que além disso sentem prazer e amor pela cultura junina. Para esses grupos, a quadrilha representa muito mais que apenas uma forma de divertimento circunstancial. Ela se caracteriza como uma atividade cultural, elaborada, pensada e desenvolvida como meio de manifestação e comunicação desses grupos com a sociedade na qual estão inseridos.

Dentro deste universo é difícil formar conceitos e definir padrões para esta manifestação é de caráter basicamente popular. Conservam-se os aspectos tradicionais da dança, mas é impossível evitar a influência de elementos externos nos trabalhos. A consequência do processo evolutivo das quadrilhas juninas e da competitividade gerada está crescendo na exaltação do fator “concorrência” à categoria de objeto maior do trabalho dos grupos. O nível de competitividade que caracteriza hoje os festivais de quadrilha por um lado é o elemento fundamental que está fazendo as quadrilhas perderem muitas de suas qualidades de autenticidade, mas por outro lado se configura como o grande fator motivador da permanência da manifestação e de seu engrandecimento.
Quando um grupo se propõe a montar uma quadrilha, se ele tem conhecimento da atual estrutura na qual se desenvolve a manifestação em Rio Branco, Acre, com certeza este grupo vai levar seu trabalho para competir em festivais que são na realidade os espaços de exibição onde o grande público tem oportunidade de ver as quadrilhas. Neste sentido todos os grupos procuram fazer um trabalho com maior rigor e elaboração, onde esforços financeiros não são medidos e os elementos que são incorporados à quadrilha ficam a cargo da imaginação, ou estratégia, de cada grupo que busca apresentar uma quadrilha competitiva e que agrade aos jurados e público espectador.
Chegamos então ao ponto que vem causando nos últimos anos, inflamados debates entre grupos de quadrilhas e folcloristas: os elementos modernos, tanto materiais, como ideológicos, que podem ser incorporados à quadrilha junina sem que ela perca sua identidade e função cultural. O caso é que hoje em dia vários grupos de quadrilha no Acre estão fazendo uma reavaliação e desenvolvendo novas leituras sobre a temática das festas juninas, claro que sem perder sua essência verdadeira. As festas estão vinculadas às tradições da cultura pela permanência , e consequentemente acabam por acompanhar seus movimentos e transformações.

Os produtores culturais não têm economizado criatividade ao utilizar a quadrilha como uma forma de expressão e comunicação de sua realidade cotidiana, sem perder de vista a tradição deste instrumento de representação. Sentimos que estamos dando os primeiros passos na construção do perfil dos conteúdos que a quadrilha tem utilizado hoje em dia para se expressar. Estes conteúdos estão presentes desde a forma de composição dos grupos e sua importância dentro da comunidade em que se instala até a elaboração da representação da manifestação, através da estética de seus figurinos, música e mensagens tomadas explícitas durante a encenação dos casamentos da quadrilha.
Podemos compreender que a quadrilha junina se trata de uma manifestação cultural e, portanto, um produto que se caracteriza também como um meio de comunicação de um grupo social, com mensagens que lhe são peculiares e pelas quais seus produtores respondem. Estarei tratando as quadrilhas juninas como um produto cultural que, com o tempo ou, mais expressivamente, pelas dinâmicas culturais, passou a ser uma forma de comunicação de grupos sociais estabelecidos na periferia da cidade e que possui também sua relação com os meios de comunicação de massa, conhecidos como “mass media”. Ao assumir esta nova função social, a partir das discussões entre tradição e modernidade, podemos acrescentar às quadrilhas um efeito de reelaboração cultural espontânea que abriria para esta manifestação um aspecto propriamente político da dinâmica cultural referentes à sua natureza, particularidades e ideologia.
Não custa relembrarmos que a realidade das quadrilhas é constituída por um sistema de produção que tem avançado significativamente em seus padrões objetivando sempre uma superação em relação aos grupos concorrentes nos festivais de quadrilhas juninas. A trajetória desta manifestação pelas mãos dos próprios grupos sociais tem um significado especial de todo crescimento e amadurecimento em relação ao evento que produzem. A quadrilha, tal qual qualquer outra manifestação cultural, tem acompanhado a evolução de costumes e hábitos que têm marcado a cultura moderna, mas sentimos que sempre existe uma outra preocupação na conservação do sentido tradicional do evento.
A tradição se reproduz, mas, não está livre dos condicionantes externos a sua realização, já que seus reprodutores, principalmente no caso dos centros urbanos, estão ligados e afetados diretamente por novas condições de comportamento e de luta social. É certo que algumas tradições desaparecem, outras se descaracterizam pelo processo de mercantilização e ainda outras são mantidas em suas origens com força e fidelidade. Mas o fato é que todas têm sua produção ou interpretação reordenadas pela interação com o desenvolvimento moderno. Podemos dizer que os padrões de valorização do tradicional e do moderno não explicam qualquer fenômeno social, mas são em si mesmos fenômenos que devem ser explicados na análise dos processos de evolução e transformação social.
A afirmação do tradicional não se dará pelo bloqueio ao avanço da modernidade, nem a modernidade se efetivará de fato como um processo indutor de ações completamente irracionais por parte da sociedade em uma contínua descaracterização do sentido tradicional de sua cultura. Lembremos que cada padrão cultural, seja tradicional ou moderno, sobreviverá na medida em que persistam as situações que lhe deram origem através da regularidade de suas manifestações. As mudanças de significados devem ser vistas também como uma forma de expressão dos novos problemas sociais que se apresentam e não como uma simples adaptação de novos valores para sua realização. Seja nas quadrilhas juninas ou em qualquer outra manifestação de cultura popular, todo o aparato estético e ideológico de seu sentido está firmado em significações próprias de cada grupo e correspondem às necessidades particulares que cada um deles têm na construção de seu instrumento comunicacional.
Com tudo isso, temos então que a quadrilha continua sendo uma manifestação viva no contexto cultural de nosso povo, preservando dignamente uma tradição passada de geração a geração pela oralidade e pela regularidade de sua realização. Realização esta que está nas mãos de cada grupo de quadrilha que por julgamento próprio constrói seu produto cultural de acordo com seu entendimento acerca da heterogeneidade que cerca a cultura do mundo moderno. Em todos os casos, podemos dizer que existe um equilíbrio muito evidente entre o tradicional e o moderno e que as tendências que se perpetuam são aquelas que encontram respaldo no meio quadrilheiro e junto ao público. Vejo neste meio um desejo claro da valorização deste produto cultural e da constante preocupação com a recepção do público que vai aos festivais ver as quadrilhas, porque este é considerado o grande júri que dará legitimidade aos trabalhos apresentados.
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Referências:
[1] Silva, Leny de Amorim. Acorda povo, São João chegou!!!
Recife, Edição do Autor, 1993.
[2]Sodre, Muniz. A Verdade Seduzida – Por um conceito de cultura no Brasil.
Rio de Janeiro, Codeen, 1983.
Imagens retiradas do Instagram LIQUAJAC: Quadrilha junina Sassaricano na Roça; Assanhados na Roça e Matutos na Roça;
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Por Helenayra Moreira do Nascimento – Bacharelanda em História pela Universidade do Acre (UFAC); Membro do Centro Acadêmico de História Bacharelado Pedro Martinello, e diretora financeira da Associação Atlética Acadêmica dos Cursos de História – Perversa.