O estado possui a maior taxa de feminicídio no país, equivalente a 2,9%, mais que o dobro da média do Brasil
“Ela não sabia dizer não para ninguém. Talvez se ela tivesse dito não, hoje estaria viva”, reflete Matheus Tavares, 28 anos, sobrinho de Keyla Viviane Santos Nascimento, vítima de feminicídio.
“Eu literalmente lembro de tudo, tudo, tudo desse dia, o último do mês de fevereiro de 2016. Aquela época chuvosa. Passou o dia chovendo e serenando. Na época, cursava fisioterapia na universidade. Nesse dia resolvi ficar em casa. Por volta de 18h, minha mãe entra no meu quarto, com os olhos arregalados, falando: “tá bom, estou indo”. E disse: “meu filho, se veste que aconteceu alguma coisa com a sua tia, lá na OK [loja onde a vítima trabalhava]”.
Eu vesti uma camisa muito rápido e minha mãe ficou se trocando. Já saí correndo, para a casa da minha avó. Também passei chamando os meus primos: “Levi, Júnior, corre que aconteceu alguma coisa com a tia Vivi”. Saí de carro na frente de todos eles. Na rua escura, saindo da minha avó, ainda chovendo, do lado de um supermercado antigo. Passei na frente dos carros, correndo na avenida principal e cheguei próximo de onde tudo aconteceu.
No caminho, meu tio ligou e disse: “meu filho, corre aqui, sua tia foi esfaqueada”. Nesse momento eu estava na esquina, chegando na loja. Esses minutos até lá foram os mais difíceis da minha vida.
Quando cheguei lá vi duas viaturas – uma do Samu e uma da polícia. Como essa viatura da polícia era uma caminhonete foi meio que um alívio, e pensei: poxa, minha tia vai ser levada na viatura da polícia, porque não foi nada tão grave. Então, vão levar ela daqui para ser mais rápido.

Lembro que no meio do caminho eu vinha pensando: acredito que alguém tenha tentado assaltar minha tia ou que ela se envolveu em uma briga. Lembro de cada pessoa me olhando pelo meio da rua, como se todo mundo soubesse e eu ainda não.
Então, quando cheguei na viatura da polícia, ele [o ex-namorado] se encontrava lá, e eu já meio que deduzi tudo. Apenas perguntei para ele: por que você fez isso? E após esse momento, fui para frente da viatura do Samu. Vi os médicos fazendo uma reanimação cardiopulmonar. Eles tentavam reanimar a minha tia. Então, nesse momento vi que era muito grave.
Eu não gastei dois minutos da minha casa até a loja. Já fazia em torno de cinco minutos que o Samu estava lá, tentando reanimá-la. Então, já se passava mais de meia hora que a equipe de médicos tentava salvar minha tia, mas infelizmente não conseguiram.”
Quem era ‘Vivi’?
Vivi, forma carinhosa como a família a chamava, era natural de Rio Branco. Nasceu no dia 24 de abril de 1985, no Hospital Santa Juliana. Gostava de música gospel, não importava qual fosse, mas influenciava para que o sobrinho, os primos ou as filhas ouvissem.

A vendedora Keyla Viviane Santos Nascimento sonhava em se formar em Pedagogia. Dez dias antes de morrer havia se matriculado no curso. Além disso, ela também desejava realizar uma viagem com as filhas. Mas teve os sonhos e planos interrompidos aos 29 anos, por um feminicida no dia 29 de fevereiro de 2016, que agiu contrário a todas as atitudes de alguém que realmente ama.
Ela foi o primeiro caso julgado por feminicídio no Acre, mas infelizmente não foi o único. Viviane faz parte de uma estatística que coloca o estado em terceiro lugar com a maior taxa de feminicídio do país – 2,9 para cada 100 mil mulheres, segundo dados apresentados pelo Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) em 2021.

Pelos gráficos, percebemos que o Acre saltou da 4ª posição no ranking brasileiro de feminicídios, em 2020, com 2,68, para o 1º lugar, em 2021, com a marca de 2,90 de mortes por grupo de cada 100 mil mulheres.

Cenário do feminicídio no Acre
Já os dados do Anuário de Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, no ano de 2021, mostram que o Acre se encontra na terceira posição em relação ao homicídio de mulheres, com uma taxa de 6,39 para cada 100 mil mulheres. Um número considerado alto, pois a média do país é de 3,56. Na imagem, é possível observar que o Acre fica atrás apenas dos estados de Roraima e Ceará, com 8,27 e 7,52, respectivamente.

Apesar desses homicídios contra as mulheres terem ocorrido e não serem apontados como feminicídio, ou seja, assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher, tipificado pela Lei do Feminicídio (13.104/2015), o anuário mostra que em alguns deles foi apontada a frequência absoluta de crime com recortes de feminicídios, em que se destaca aqui a situação do Acre em cada ano:
- 2017 – 37 homicídios – 35% com recorte de feminicídios;
- 2018 – 35 homicídios – 40% com recorte de feminicídio;
- 2019 – 31 homicídios – 35% com recorte de feminicídio;
- 2020 – 31 homicídios – 39% com recorte de feminicídio;
- 2021- 29 homicídios – 45% com recorte de feminicídio.
Dos casos registrados no ano de 2021, os municípios que mais registraram feminicídios foram: Rio Branco, com 38%; em seguida Cruzeiro do Sul, com 23,08%; e Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Acre, Tarauacá e Sena Madureira, com a mesma porcentagem de 7,69%.
O anuário também aponta os principais motivos que levaram esses agressores ao feminicídio no ano de 2021:
- Ciúme – quatro mulheres foram mortas;
- Separação – três mulheres;
- Estupro – duas mulheres;
- Organização com ações criminosas – uma mulher foi morta;
- Uso de drogas – uma mulher foi morta.
Segundo a Procuradora do MPAC, Patrícia Rêgo, em quase 90% dos casos o feminicida é íntimo da vítima, já foram maridos, companheiros ou namorados, por exemplo. E por isso o crime se torna de fácil elucidação, em que o índice de condenação é de 80% dos casos. Como o feminicídio não foi sucedido por suicídio, os criminosos podem estar presos, provisoriamente ou já foram condenados, o que leva a procuradora ressaltar que a principal falha do Estado não é a repressão, mas na prevenção.
“Não acho que os autores, que são em maioria homens comuns, trabalhadores, pais de família, não ligados à criminalidade, façam isso porque acreditam na impunidade. Se sentem autorizados a fazerem isso, pelo legado patriarcal”, destacou.
Rêgo também afirmou que o MPAC busca estratégias para o enfretamento do feminicídio. E uma das formas encontradas pela instituição para entender o fenômeno foi o estudo e análise criminal de todos os feminicídios que ocorreram desde 2018 até 2020, num observatório de violência de gênero.
A partir desse trabalho, começaram a analisar todos os inquéritos e processos criminais relativos ao período, em que o Acre passou a figurar entre os estados que lideram os números de feminicídio no ranking brasileiro, resultando na chamada realidade-feminicídio.
“Esse estudo possibilitou um raio x dos casos, das condições em que o crime ocorre, do perfil da vítima e do infrator, além dos índices elucidados e condenações”, salienta.
Vivi e o feminicida
“Não lembro há quanto tempo eles estavam juntos, mas foi por um bate papo a internet, na época não existia ainda o WhatsApp nem essas redes sociais que hoje ajudam pessoas a se conhecer. Então, ela o conheceu e rapidamente já começaram a namorar.
No início ele frequentava a casa da minha vó e falava que era policial e aluno da Ufac. Ele falava várias mentiras e logo fomos descobrindo. Com isso, começamos a não apoiar esse relacionamento.
Acredito que assim como nós, ela também foi descobrindo as mentiras que ele chegou contando para nossa família. Mas, como a minha tia estava gostando muito dele, a Vivi não teve coragem de deixá-lo.
Não sabemos se ele a proibia de alguma coisa. Não temos certeza se ele a agredia verbalmente, mas acreditamos que sim, pois ela já não contava mais nada para gente sobre o relacionamento dela.

Três meses antes do crime aconteceram alguns episódios que fizeram com que eles separassem. Ela teve que vir morar aqui perto de nós de novo. Então, alugou um apartamento próximo da minha casa.
Um dia, a gente escutou uns gritos de lá e já corremos até seu apartamento. Ele estava lá e gritava com ela, chamando-a de várias coisas. A partir daí começamos a ficar com um certo receio.
Ela não relatava nada pra gente. Era muito fechada sobre esse relacionamento, pois sabia que não apoiávamos. Ela começou a apagar as mensagens do celular, mas um dia tive acesso há algumas conversas do seu telefone, exatamente no dia em que ela morreu. Nas mensagens ele queria induzir minha tia a ir na casa dele, prometendo várias coisas para ela”.
A atual situação do assassino
Segundo informações do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), o julgamento foi feito pela 1ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Rio Branco. A sessão foi realizada pela juíza de Direito substituta Ana Paula Saboya. O ex-companheiro recebeu uma pena total de 27 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicial fechado, após os jurados o consideraram culpado pela prática de “feminicídio”, entendendo, dessa forma, que o crime de homicídio foi motivado pela condição de sexo feminino da vítima, em contexto de “violência doméstica e familiar contra a mulher”, com a incidência das qualificadoras de “motivo torpe” e utilização de “recurso que impossibilitou a defesa da ofendida” (homicídio triplamente qualificado).

Após os depoimentos das testemunhas e das alegações finais da acusação e defesa, os membros do Conselho de Sentença da 1ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Rio Branco consideraram Adjunior dos Santos culpado pela morte da vítima.
Mais uma mulher, mais uma vítima
“Minha irmã tinha fritado bananas para gente comer. Era banana da terra. Sentamos e conversamos, até que entre as nossas conversas, falei que achava seu esposo antipático, antes de conhecê-lo e casar com a minha irmã. Nunca imaginei que iriam se casar, ter um filho, uma empresa e tudo”, lembrou, Andréia Paulichen, 33 anos, irmã de Adriana, vítima de feminicídio.
“Eu havia comprado umas roupas da minha irmã e fui à loja para pagá-las. Assim que cheguei ao estabelecimento, ele chegou um pouco depois, estava realizando uma entrega. Com a sua chegada, consegui passar o cartão e finalizei a conta. Quando saí da loja, decidi vir para a minha casa.
As 1h da madrugada meu telefone tocou e era ela me ligando. Não importava a hora, eu atendia, principalmente tarde da noite, que não deveria ser por algo bom. Logo retornei. Minha irmã não conseguia falar e eu perguntava o que foi e ela dizia: “Déa, o Hítalo me traiu, o Hítalo me traiu com a minha melhor amiga. E eu falei: ‘isso de novo, toda vez tu me fala isso. Ele não te traiu, não’. Mas em seguida, ela tornava a repetir, e que ele tinha confessado. Naquele momento falei para ela que eu não acreditava naquilo.
Então perguntei por ele e ela falava que não estava e teria ido ao Pronto-Socorro. Liguei para ele e falei que havia falado com ela. Ele falou assim: “tudo que ela falou é verdade. Me perdoa. Me perdoa, eu a traí com a melhor amiga dela. Eu não sei porquê que fiz aquilo. Tudo o que ela falou é verdade”.
No meio da conversa aproveitei para perguntar onde ele estava, e se realmente se encontrava no Pronto-Socorro. E ele repetia que sentia muito pelo que havia ocorrido, e sentia por eu também estar vivenciando isso.
Até que ele faz um pedido, para ir até minha irmã, que precisava ficar com ela. Respondi que era tarde, e que a neném estava dormindo. Mas a minha outra irmã, a Juliana, estava com ela. Porém, ele falava que não confiava nela, e insistiu para que eu fosse.
Cheguei por volta de 2h da madrugada na residência da minha irmã. Drika contou que tentou sair de casa, mas o Hítalo havia trancado a porta. Apesar disso, segundo as palavras dela, a insistência de ir embora continuou, até que o Hítalo aproveitou o momento em que ela se abaixou para pegar o filho, deu dois murros nas costas dela. E ela foi ao chão, deitada.
Ela conta que neste momento pegou uma faca que estava ali perto e furou a canela dele, pois ele tinha batido nela. Ela comentava que estava arrependida e que agiu sem pensar, não queria ter feito aquilo. Perguntei se ela havia ligado para mãe dele, e ela respondeu que a sogra não poderia ficar com ele no hospital. Foi então que ela pediu para eu ficar com o filho deles. “Cuida dele pra mim, pediu ela. Eu vou ficar com ele no hospital. Eu vou chamar o Uber e ficar com ele”.
Quando chegou ao local, ela me ligou dizendo que o Hítalo não estava muito ferido. Disse que tinha sido superficial e que estava voltando para casa. Mas que ele não ficaria, iria para a mãe dele.
Fiquei na porta esperando. Quando o Uber parou, ele foi o primeiro a descer, fiquei sem entender. Mas tudo bem. Entraram na loja e o Hítalo sentou. Então minha irmã fala que ele deveria ir para mãe dele, mas ele insistiu em ficar com ela, dizendo que não queria perder ela e o filho.
Mas a minha irmã estava decidida, disse que não perdoaria, que ainda estava com ele porque tinha dúvidas da traição, mas agora, com a confissão, ela mantinha a decisão de não querer mais o relacionamento. Apesar disso, o Hítalo implorava dizendo que não queria perder eles. Neste instante, a Drika me pede para ficar na minha casa, mas eu disse era muito longe para ela. Até que sugeri para dormir na loja mesmo.
Mas a minha irmã permaneceu insistindo, até que teve ideia de ir deixar ele de carro. Ela iria dirigindo de madrugada, mesmo não sabendo dirigir tão bem. Vendo aquela situação de que nenhum dos dois dariam o braço a torcer, pedi a Juliana para ficar com eles – que assim seria mais seguro.
Então fui para casa. Foi a última vez que eu a vi. De manhã eu acordei e fui trabalhar. Quando cheguei, mandei mensagem no WhatsApp dela, perguntando como estava. Vi suas mensagens. Ela dizia que não estava tudo bem e queria a separação. Apesar disso, ela me afirmou que iria ficar tudo bem e que não era para eu me preocupar. E não ficou.
Perguntei também para ele se estava tudo bem, e segundo ele, não estava. E eu disse que ficaria tudo bem, mas que precisavam parar de brigar.
Perto de 12h30 meu marido me ligou. Então ele contou que aconteceu um acidente com a Drika. Não disse exatamente o que era, mas que era para eu ficar no trabalho e não sair de moto, pois ele estava vindo me buscar. Concordei, mas pensei que teria sido algum acidente de carro. Mas achei que não tivesse sido perigoso.
Até que o meu marido ligou paro o telefone fixo da loja e pediu para minhas colegas não me deixarem sair de morto, pedia pelo amor de Deus. Quando elas me falaram que ele tinha ligado, já imaginei que era alguma coisa mais grave.
Naquele instante fui para o estoque, porque estava dentro da loja. Quando cheguei no local, liguei para minha sogra e perguntei o que tinha acontecido, ela disse que não sabia bem, mas que estava no jornal “Na Hora da Notícia”.
Acessei o meu celular e foi bem na hora que ela aparecia. Ela estava naquele saco preto, sendo colocada dentro daquela caixa. Eu só lembro que me ajoelhei no chão. Foi a pior notícia da minha vida. Saí correndo do estacionamento e a minha amiga me segurava. Não conseguia me conter. Até hoje, eu não consigo lidar com isso.”
Quem era ‘Drika’?
Adriana da Costa Paulichen nasceu no dia 6 de janeiro de 1997 no município de Acrelândia. Também era chamada de Drika, Futrica, Anna, Tire, além de outros nomes que os irmãos gostavam de apelidar. Uma mulher estudiosa, carinhosa, delicada, caprichosa, muito organizada, vaidosa que gostava muito de maquiagem, de festa e sempre estava bem arrumada.

Sempre foi muito trabalhadora. Gostava de ter seu próprio dinheiro. Era muito sonhadora, queria ter um futuro próspero, diferente da vida que teve na infância. Sempre falava que quando fosse mãe, iria dar para os filhos o que ela nunca teve.
Apesar de ter conquistado muitos objetivos, como iniciar a faculdade, abrir o próprio negócio e ter a casa própria, ela não conseguiu o seu maior desejo – acompanhar o crescimento do filho. “Ela foi assassinada com 23 anos. Ele tirou o futuro promissor que ela teria pela frente. Teve a vida ceifada por alguém que jurou amá-la até que a morte os separasse. No caso, ele foi a morte. E eu como irmã, é assim que eu vejo: ele foi a morte”, conta Andréia.
Como Adriana conheceu o suspeito do crime
“Ela o conheceu pelo Facebook. Eu acho que ele mandou solicitação para ela. Sempre tentava conversar com minha irmã, mas ela nunca respondia. Um dia, ela resolveu conversar com ele, e ele a chamou para sair. Após isso, começaram a sair mais vezes, se conheceram melhor e com isso foram se dando bem”.

A atual situação do suspeito de feminicídio
“No dia que aconteceu o crime passou um policial à paisana e ele percebeu que tinha algo de estranho. Foi então que ele parou na loja e pegou ele em flagrante. O Hítalo não teve chance de fugir. Eu não sei se na hora chegou alguém ou se tinha uma pessoa desesperada na frente. Sei apenas que o policial que estava passando percebeu que tinha algo de errado e por esse motivo, graças a Deus, ele foi preso em flagrante. E está preso até hoje.
Os advogados entraram com a liminar querendo que ele cumprisse o processo em liberdade até o julgamento, porque ele tinha endereço fixo, era réu primário e nunca teve problema com a Justiça. Mas como ele foi pego em flagrante não pode ter esse benefício, continua preso e vai a Júri Popular.
Faz 1 ano e dois meses que o fato aconteceu. Estamos aguardando o julgamento. Não tenho uma data estipulada de quando vai ocorrer o julgamento. Espero muito que ele apodreça lá”.

Vivi e Drika – vidas interrompidas
Keyla Viviane não conhecia Adriana Paulichen. Não tinham nenhum contato. As duas mulheres tinham características, jeitos e estilos de vida diferentes. Apesar disso, algumas semelhanças as definiam, eram jovens cheias de sonhos e planos para a vida e a carreira.
Outro fator comum entre as duas mulheres é que não utilizavam medida protetiva contra seus agressores, ainda que os desentendimentos já acenassem para essa necessidade. Outra semelhança dos dois casos foi o afastamento dos familiares. Elas já não partilhavam com os parentes sobre o relacionamento.
A procuradora estadual Patrícia Regô explica que o relacionamento começa dessa forma: “o início da relação é ótima. Ele é muito gentil. A pessoa vai namorar com alguém porque se apaixona pela forma que é tratada”, diz. “Em seguida, ele começa a dar sinais de possessividade, implicar com a roupa da mulher, a tira do convívio social, da família, amigos. Alguns até reclamam do emprego, faz ela se sentir culpada por tudo na relação, destrói a autoestima.
E depois do rompimento, quando a mulher não aguenta mais, ele se arrepende, diz que ama, que vai mudar. Esse é o ciclo. Geralmente nesse ponto, para retomar a relação, começam a bater, a ameaçar, perseguir, e, em muitos casos, chegam ao extremo de matar. Dos casos que tiveram esse fim no Acre, 80% das mulheres que morreram por feminicídio de 2018 a 2022 não pediram ajuda ou denunciaram”, finaliza.
Medidas protetivas no Acre
Segundo a delegada titular da Delegacia da Mulher de Rio Branco, Elenice Carvalho, a medida protetiva consiste na possibilidade do magistrado restringir alguns direitos de um agressor, visando a proteção da vida e da integridade física e psicológica de uma mulher vítima de violência doméstica. Ela pode ser concedida após a ocorrência de um ilícito penal ou para prevenir a ocorrência.
A delegada conta que é necessário ampliar as políticas que visem o apoio e fortalecimento da mulher, tanto para denunciar quanto após a denúncia, de forma que elas se tornem mais efetivas no tocante à obtenção de moradia, trabalho, segurança e do apoio jurídico, social e psicológico, além da criação de abrigos de segurança no interior do estado, pois atualmente só dispomos de um na capital.
De acordo com dados da Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública, nos últimos dois anos – 2021 e 2022, todas as mulheres que morreram por feminicídio não haviam pedido medida protetiva.

A presidente do Conselho Estadual do Direito da Mulher, Geovana Castelo Branco, explica que em alguns momentos as mulheres não querem registrar a ocorrência. As vítimas chegam na delegacia ou até para um determinado policial, e afirmam que querem dar um “susto” no agressor, para que ele fique com medo e não a agrida mais, pois acreditam que ele vai mudar e se tornar outra pessoa.
Em muitos casos ele não muda, e com isso, o ciclo da violência se repete. Dessa forma, muitas medidas protetivas não são solicitadas porque elas acham que ele não vai chegar no último degrau da agressão – que é o feminicídio.
Além disso, outro impasse dificulta com que essas medidas sejam pedidas, muitas dessas mulheres são dependentes financeiramente do marido/companheiro, ou seja, não possuem uma condição razoável de sustento ou ainda temem que os filhos fiquem descobertos. Verifica-se, com isso, que a mulher precisa se sentir segura em relação ao ato de denunciar.
“E uma coisa muito séria que está acontecendo no nosso estado é que as medidas protetivas no interior demoram muito para ser expedidas. O delegado pede a medida protetiva, mas o juiz não despacha logo. Demora cerca de oito, dez, quinze dias ou até um mês”, observa a presidente.
Com base nos dados do Tribunal de Justiça do Acre, de 2016 até o dia 14 de setembro desse ano, foram expedidas 13.486 mil medidas protetivas para todo o Acre. Apesar de nenhuma mulher que morreu por feminicídio ter pedido essa ajuda em 2021, foi o ano que mais registrou expedição de medida protetiva, chegando a 2.620 medidas. Em 2020 o número foi menor, com 2.058 mil. Enquanto em 2022, até o mês de agosto, foram contabilizadas 1.686. Como o ano não acabou, esse número ainda pode aumentar.
Os três municípios que mais registram a expedição de medidas protetivas em 2020, 2021 e 2022 foi Rio Branco, com 3.641, sendo o último ano com mais registros – 1361. Em segundo lugar fico Cruzeiro do Sul, com 887, também com maior índice em 2021, chegando a registrar 227. Enquanto o município de Sena Madureira foi o terceiro com 326, mas diferente dos outros, registrou o maior índice em 2020, com 143 medidas protetivas expedidas.
Quando perguntado ao sobrinho de Keyla Viviane se ela havia pedido algum meio de ajuda ou até mesmo denunciado alguma violência, ele afirma que não. Jamais a família imaginava que o assassino cometeria um crime grave.
Segundo Carvalho, ela não conversava com a família e não procurou a Delegacia da Mulher, pois não deu tempo de pedir ajuda.
“Ele a chamou para conversar fora da loja. Assim que ela pôs o primeiro pé para fora da loja ele puxou pelo pescoço e em seguida deu três facadas na minha tia. Nunca imaginei que ele fosse fazer um ato de tamanha crueldade”, relembra Carvalho.

No dia do crime, segundo o sobrinho da vítima, ela foi chamada para fora da loja pelo ex-companheiro, o motorista Adjunior dos Santos Sena, que estava com 32 anos na época. O assassino tentou fugir do local, mas foi capturado por populares que passavam próximo no momento.
“E assim se foi uma grande parceira, amiga, que carinhosamente considerava como irmã”, relembra Matheus. “Todas as qualidades que possam existir no mundo, minha tia possuía. Mas onde ela se sobressaía era na gentileza, na doação e no zelo. Não sabia dizer não para ninguém. Talvez se ela tivesse dito não, hoje estaria viva”, conta ele.


Raízes do Feminicídio
Entender o porquê do Acre ser o estado com a maior taxa de feminicídio do país não é uma tarefa simples, pois não existe nenhum estudo com sentido de diagnosticar as causas fundantes especificamente para o estado, como afirma a socióloga Gleiciane Pismel.
A profissional afirma que esse problema não está relacionado à segurança pública ou às normas jurídicas. Mas, é um impasse complexo social que para combatê-los, precisaria de anos.
“Para a gente avançar nessa agenda são anos de investimentos na educação, principalmente para que novas gerações passem a pensar o papel da mulher na sociedade de forma diferente”, salienta.
Pismel reitera que a educação no Acre é deficiente em termo de qualidade, então isso pode ser o motor para alavancar as estatísticas que influenciam nesse contexto. Além disso, o problema da violência contra a mulher é generalizado, não ocorre somente no Acre, mas ocorre em outros locais do país, assim como na Europa. Com isso, ainda se percebe uma base social com forte traço do patriarcado.
“O imaginário social sempre olha para a figura masculina como se somente o homem tivesse capacidade. Essa divisão sexual do trabalho nos postos de poder é muito refletida no Acre”, observa.
A socióloga cita ainda exemplos de mulheres que tiveram destaque na política, em que o Acre foi o estado do país que teve a primeira mulher governadora, Iolanda Fleming. Outro exemplo feminino de destaque é o de Marina Silva, uma acreana, nascida num seringal da cidade de Xapuri, que teve mandatos de vereadora, senadora, ministra da república, chegando a ser candidata a presidente do Brasil, e recentemente, foi eleita deputada federal pelo estado de São Paulo.
Essas representatividades femininas na política não estão, contudo, determinando uma evolução no olhar e na condição do ser mulher no estado do Acre, com todos os seus direitos, proteções, potencialidades e liberdades garantidas.
Dessa forma, ainda que se conte atualmente com os mecanismos jurídicos recentemente criados de defesa e combate à violência contra as mulheres, como a Lei Maria da Penha que foi colocada em prática em 2006, e a do feminicídio, em 2015, é provável que não se perceba uma mudança significativa no cenário atual. Para isso, seriam necessárias ações que atacassem a raiz do problema, ou seja, o patriarcado, e com isso, uma mudança de pensamento coletivo.
Quem concorda com essa afirmação e a aponta também como um impasse para vencer os altos números de feminicídio, é a procuradora estadual, Patrícia Rêgo. A profissional aborda que a sociedade nasceu em um meio patriarcal e reproduz isso. O estereótipo do papel do homem e da mulher, em que ela ocupa o lugar menor.
Apesar de muitas mulheres terem conquistado espaços, direitos e entre outros, existem em algumas pessoas o pensamento de que a mulher “só serve” para cuidar da casa, do marido e filhos, e que não precisa trabalhar nem ser remunerada.
“E a gente vai reproduzindo isso em casa. Para as nossas filhas nós damos bonequinha, para ela cuidar, porque no futuro ela vai cuidar dos filhos. E o pai? Não vai cuidar? Por que não se dá uma boneca para ele também? Ele também tem a obrigação de pai. O homem também precisa cuidar das crianças, assim como cozinhar, não esperar que seja uma função somente dela”, exemplifica.
Com isso, essas atitudes acabam por refletir na sociedade, as mulheres se tornam minoria na política, nos espaços públicos ou de poder. Muitas delas até chegam nesses locais, mas ganham menos. “Enquanto isso não mudar, a gente não vai vencer essa violência que é naturalizada todo dia, que autoriza a violência física e até a morte. Assim eu enxergo o contexto do feminicídio no Brasil e no Acre”, conclui.
Metade dos brasileiros conhece ao menos uma mulher vítima de violência doméstica, por isso, se você que está lendo essa matéria estiver passando por agressão física, violência sexual, psicologica ou patrimonial ou conhece alguma mulher que esteja, entre em contato com as centrais de ajuda:
Centro de Atendimento à Vítima (CAV): Rua Marechal Deodoro, 472, Prédio-Sede do Ministério Público – cav@mpac.mp.br – (68) 99993-4701
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam): Via Chico Mendes, 803 – Triângulo (ao lado do Deracre) – (68) 3221-4799;
Centros de Referência de Assistência Social (Cras):
Sobral: Rua São Salvador, 125 – (68) 3225-0787;
Calafate: Estrada Calafate, 3937 – (68) 3225-1062;
Bairro da Paz: Rua Valdomiro Lopes, 1728 – (68) 3228-7783;
Vitória: Rua Raimundo Nonato, 359 – (68) 3224-5874;
Tancredo Neves: Rua Antônio Jucá, 810 – (68) 3228-1334;
Santa Inês: Rua da Sanacre, 1327 – (68) 3221-8311;
Triângulo Velho: Rua Flávio Baptista, 200 – (68) 3221-0826.
Casa Rosa Mulher: Rua Nova Andirá, 339 – Cidade Nova – (68) 3224-5117;
Serviço de Atendimento à Violência Sexual: Maternidade Bárbara Heliodora – Travessa da Maternidade – Bosque;
Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Física: Upas Sobral, Segundo Distrito, Cidade do Povo e Pronto-Socorro.
Ministério Público – Centro de Atendimento à Vítima (CAV): sede – R. Mal. Deodoro, 472 – Centro – (68) 3212-2000;
Defensoria Pública – Núcleo de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência: Av. Antônio da Rocha Viana, 3057 – (68) 3215-4185.
Denúncias contra violência mulher – Disque 180