Por Cassia Iasmin de Oliveira Marinho
Atualmente, tem sido recorrente nos deparamos com notícias falando sobre a fatalidade de uma bala perdida ter tirado a vida de um adolescente negro. A utilização do termo “bala perdida” não é usada levianamente, ele tem a intenção de trazer a ideia de que foi um infortúnio, no entanto, quando digitamos na barra de pesquisa as notícias relacionadas a balas perdidas constatamos o fato de que essas balas, curiosamente, acabam sempre acertando um alvo que tem a pele negra.
Ao mesmo tempo que nos noticiários infiltram inconscientemente a ideia de que esses assassinatos são exceções, não possibilitando uma fácil associação dessas mortes a brutal violência policial dirigida a população negra, pela escolha muito sagaz de palavras para compor a manchete, observamos a popularidade dos programas de televisão e jornais que fazem cobertura policial.
A grosso modo, esses jornais policias ganham dinheiro por meio da audiência noticiando casos policiais, geralmente esses casos sempre envolvem furtos, assassinatos, tráfico e demais delitos que causam choque, revolta e repulsa nas pessoas que assistem. Além disso, suas manchetes sensacionalistas sempre com apresentadores que se posicionam com forte moralismo, contribui fortemente para a naturalização e banalização do genocídio da população negra brasileira que cresce ano após ano.
Zaffaroni (2012) interpreta a maneira como as mídias tratam os fatos criminosos com o que ele denomina “criminologia midiática” onde se observa a difusão de um “neopunitivismo” que seria uma seletividade no tratamento ou escolha dos criminosos. Essa criminologia midiática se estrutura com a criação de uma realidade que faz uso da informação, subinformação e desinformação que se mesclam com preconceitos e crenças que se assentam em uma causalidade mágica, que impossibilita que percebamos que essa causalidade não existe, pois ela é recorrente e constantemente justificada com os preconceitos e preconcepções particulares de cada indivíduo.
Sendo assim, ao sermos constantemente expostos a essa realidade criada, cultivamos um senso de universalização e acreditamos que de fato quando a polícia mata um negro na favela foi porque ele era um criminoso, que isso pouco tem a ver com o racismo estrutural existente em nossa sociedade, visto que todos os dias ao ligarmos o noticiário tem um negro sendo preso, portanto, é natural associar negros ao crime.
Ok, se levarmos isso em conta, como explicamos o assassinato das crianças e adolescentes negros brasileiros?
Somente nos últimos sete anos, 601 crianças e adolescentes foram baleados na região metropolitana do Rio, isso significa dizer que, em média, a cada 4 dias uma criança ou adolescente é baleado na região metropolitana do Rio de Janeiro.
A morte de Thiago Flausino Menezes, de 13 anos, durante uma ação policial na Cidade de Deus em 2023, de Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro da polícia em 2019 no Complexo do Alemão, a chacina de 111 tiros disparados contra um carro que ceifou a vida de Wilton Esteves Domingos Júnior, de 20 anos; Carlos Eduardo Silva de Souza, 16; Wesley Castro Rodrigues, 25; Roberto Silva de Souza, 16, e Cleiton Corrêa de Souza, 18, em novembro de 2015. Todos esses casos e os anteriores a este, apesar de gerarem uma comoção com protestos por parte da família e manchetes em jornais, não foram capazes de pressionar a justiça brasileira numa resolução e punição aos seus assassinos[1].
Esses jovens negros são mortos e viram apenas mais uma manchete de jornal e não há justiça para as famílias das vítimas que convivem com a dor da perca e a brutal necessidade de defender seus filhos contra as especulações falaciosas que são criadas para justificar essas execuções.
A menção dos nomes de cada um deles, não é sem propósito, mas sim para nos recordarmos que além de um número estatístico, eles foram crianças e adolescentes cheios de sonhos, tinham famílias, amigos e um futuro que foi cruelmente interrompido.
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019, os óbitos em decorrência de intervenção policial cresceram 19,6% de 2017 para 2018, atingindo a 6.220 pessoas. Considerando apenas esse tipo de morte, 99,3% eram homens e 77,9% jovens de 15 a 29 anos, entre 2017 e 2018.
Ao analisarmos esses dados podemos constatar que há um óbvio perfilamento racial no brasil, onde o bandido tem uma cor e, diferente do que se pode pensar, essa questão não é uma novidade, nosso país empregou uma política eugenista que objetivava uma limpeza étnica de “raças” consideradas como inferiores para que houvesse a predominância dos “bons genes” da raça branca, que – para a surpresa de absolutamente ninguém – era considerada a raça superior.
Os negros, portanto, são inicialmente encarados como os braços necessários para o progresso do país e, após a abolição em 1888 são considerados o atraso da nação, o empecilho que impedia o Brasil de se desenvolver, fazendo se necessário uma limpeza racial no país. Os estereótipos do negro como “malandro”, “bandido”, como um indivíduo bruto, burro e que não se podia confiar estão fincados nesse país desde que o Brasil é Brasil.
Dessa forma, o caminho para a resolução de um problema tão complexo não se dará com a dissolução da polícia, visto que não é ela o único órgão a serviço do Estado brasileiro que pratica violência contra os corpos negros. O primeiro passo deve ser encarar que não há uma democracia num país onde um determinado grupo é alvo de sucessivas violências de Estado baseado em suas origens e, principalmente, baseado em sua cor.
[1] De acordo com um estudo desenvolvido pelo Núcleo de Justiça Racial (NJRD) da Escola de Direito São Paulo (FGV Direito SP) mesmo em casos famosos de letalidade policial contra negros, a Justiça brasileira evita responsabilizar a letalidade policial contra eles. Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/estudo-mostra-justica-brasileira-evita-responsabilizar-letalidade-policial-contra-negros
REFERÊNCIAS
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
“Futuro Exterminado”: plataforma mostra quem foram crianças e jovens vítimas de tiroteios no RJ. Carta Capital, 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/futuro-exterminado-plataforma-mostra-quem-foram-criancas-e-jovens-vitimas-de-tiroteios-no-rj/> Acesso em: 13 de setembro de 2023.
Cassia Iasmin de Oliveira Marinho – Professora da Rede Pública do Estado do Acre, Graduanda em Artes Visuais pela Universidade de Brasília, Pós-Graduanda em Criminologia na Faculdade Venda Nova do Imigrante (Faveni). Licenciada em História (Ufac). Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).