A violência contra mulher é uma pandemia antiga
“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180, vou entregar teu nome e explicar meu endereço. Aqui você não entra mais”.
A violência contra a mulher é algo que existe desde os primórdios. Remota de épocas em que apanhar era “normal” e viver para o companheiro era a única sina. A mulher se vê vítima de situações constrangedoras, violentas e, por vezes, mortal há séculos. Uma pandemia antiga.
Maria – nome fictício, já que a vítima pediu para não ser identificada – conta que há cerca de 18 anos foi vítima de uma tentativa de feminicídio – à época a nomenclatura nem sequer era utilizada. “Eu estava apaixonada e não conseguia ver a gravidade da situação em que estava me metendo. Fui agredida com palavras e relevei. Fui agredida com tapas e perdoei. Até que chegou o dia em que senti minha carne ser literalmente cortada com uma faca de cozinha. Eu só pensava nos meus filhos, que não são deles. Quase fui morta após receber algumas facadas do homem que eu amava. Foi um milagre estar viva pra contar essa história” diz.
Francisca – outro nome fictício dado a uma personagem real – também passou por uma situação semelhante. A vida não fora fácil para ela. “Engravidei jovem e fui abandonada pelo pai do meu filho mais velho. Foi muito difícil, mesmo tendo ajuda da minha família. Quando conheci meu ex-marido, década de 1980, achava que meu príncipe era ele. Acho que estava tão carente que logo logo fomos morar juntos. Eu o amava com todas as forças, mas sempre brigávamos. Às vezes ele me batia, eu o mandava embora, mas depois perdoava. Cheguei a ir na delegacia fazer a denúncia, mas me arrependia e retirava a queixa. Com todas as brigas, tivemos três filhos. Um dia, após passar várias horas bebendo, as agressões começaram. Meu cabelo foi cortado com um terçado e ele ameaçou tocar fogo na nossa casa. Foi quando minha irmã interviu e chamou a polícia. Eu achava que iria morrer. Mas foi nesse dia que resolvi dar um basta e não perdoar mais. Nessa época não existia lei maria da penha. Ele insistiu pra voltar várias vezes ainda dizendo que iria mudar, mas achei melhor, por minha vida e pela de nossas filhas, dizer não”.
As histórias de Francisca e de Maria se confundem com as de tantas outras vítimas. No Brasil, casos como esses são comuns. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que 1225 mulheres foram vítimas do crime de feminicídio no ano de 2018. Em 2019, o número subiu para 1314. O Acre, empatado com Alagoas, é o estado onde mais se perdeu mulheres para o feminicídio, situação agravada neste 2020 com a pandemia do novo coronavírus.
(Foto: reprodução da internet)
Pandemia da criminalidade
A pandemia do novo coronavírus isolou famílias para evitar o contágio da Covid-19, doença que já matou milhões de pessoas em todo o mundo, mas também trouxe a tona a face perversa vivida – e desconhecida – em muitos lares. Um prato cheio para o agressor cometer seus crimes ainda mais distante dos olhos da sociedade.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em outubro deste ano, indica uma alta de 1,9% nos casos de feminicídio se comparado ao mesmo período do ano anterior. No Acre, a situação é bem pior. “O isolamento social com certeza tem sido um fator de aumento de violência doméstica contra a mulher em todo o país, principalmente no Acre, onde houve um aumento de 166% do número de feminicídios neste período de 2020, quando comparado ao mesmo período de 2019”, pontuou o promotor de justiça do Ministério Público do Acre, Júlio César de Medeiros.
Ele destaca ainda que a existência de uma “pandemia da criminalidade”. “Esse triste fenômeno, temos chamado de “pandemia da criminalidade”, e pode ser explicado pelo aumento do grau de vigilância do agressor sobre a vítima no ambiente doméstico, dificultando que a mulher procure a Delegacia, o que não a impede, obviamente, de acionar a Polícia Militar ou o próprio Ministério Público, a fim de serem deferidas medidas protetivas de urgência”, disse.
Em briga de marido e mulher se mete a colher
“Eu me meti, sim, porque eu precisava salvar minha irmã daquela situação”, afirma Raimunda, irmã de Francisca. “Não fomos criadas apanhando de nosso pai que, apesar de ser analfabeto e do interior, sempre soube nos dar uma boa criação. Então, porque se submeter a uma situação de viver sendo agredida pelo marido?”
A denúncia de agressão pode e deve ser feita por qualquer pessoa, mesmo que essa não seja a vítima, já que casos de violência doméstica são sujeitos a ações penais produzidas pelo Ministério Públicos mesmo sem o consentimento da vítima.
“Eu acho que qualquer pessoa que ver uma mulher, criança ou idoso sendo agredido, deve denunciar. Ninguém tem que viver debaixo de surras e ameaças. Deus não fez ninguém pra viver assim, não”, finalizou Raimunda.
Promotor Júlio César (foto: assessoria)
Clique Paz
O promotor Júlio César enfatiza que o MPAC tem se aprimorado no que diz respeito ao enfrentamento ao feminicídio e à violência de gênero, “apoiando campanhas como “Nenhuma mulher a menos”, realizando reuniões com a rede de proteção a fim de dar um tratamento mais humanizado à vítima ainda na Delegacia de Polícia, criando um Grupo de Trabalho especial visando o combate às prescrições desses crimes, e elastecendo os canais de comunicação à disposição das mulheres, tanto com um Aplicativo virtual do Centro de Atendimento à Vítima (CAV) quanto pela internet, com o canal “Clique Paz”, disponível no site oficial da instituição”.
Ainda de acordo com o promotor, esses canais têm como principal objetivo proporcionar maior comodidade à mulher vítima de violência doméstica. “Sabemos que cada pessoa tem o seu modo de se expressar, pela fala pessoalmente, pela escrita ou por telefone”. Os canais possibilitam, ainda, o envio de anexos (fotos, áudios ou vídeos), o que pode corroborar tanto para deferir uma medida protetiva, como para comprovar a prática do crime.
Júlio César ressalta que o MPAC busca “impactar, a um só tempo: vítima, agressor e sociedade. Cada um a seu tempo e modo” e ressalta que é “de extrema importância focarmos em vítimas potenciais, a fim de plotarmos nelas o valioso conceito de empoderamento, para que elas denunciem, a fim de conseguirmos o deferimento das medidas protetivas de urgência, pois dessa forma protegeremos a mulher com mais proatividade, e com a notificação do agressor acerca da decisão judicial que defere a proteção, abre-se o leque para a decretação da prisão preventiva, caso haja descumprimento da medida”.
“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180, vou entregar teu nome e explicar meu endereço. Aqui você não entra mais.” *“Maria da Vila Matilde”, música de Douglas Germano, interpretada por Elza Soares