Recentemente, a notícia de que a cantora e compositora britânica Adele teria plagiado uma música (Mulheres) do sambista brasileiro Martinho da Vila ganhou projeção na imprensa e nas redes sociais. Quem é Martinho da Vila para questionar a Adele?, indagavam alguns fãs da cantora, indignados.
O caso é muito emblemático a respeito da relação entre cultura e identidade nacional. Merece uma reflexão.
Antes de prosseguir e entrar propriamente no assunto que nos move, algumas observações prévias e necessárias. Embora digam que a música é de Martinho da Vila[2], na verdade ela é de autoria de Toninho Geraes. Martinho apenas gravou como cantor. Interessa registrar, também, que o processo movido por Geraes contra Adele está apenas no início. A justiça brasileira já determinou a retirada da música de Adele das plataformas em que toca, mas um processo contra plágios não é nó simples de se desatar.
Evidentemente, para tomar essa medida, a justiça se valeu da opinião de técnicos e artistas, gente com conhecimento balizado para fundamentar essa decisão primeira. Não é certo, porém, que essa decisão seja mantida nas instâncias a que Adele ainda pode recorrer. Até porque, se, de fato, estamos em face de um plágio, não se trata de um plágio descarado, amador.
As músicas em questão[3] têm muito em comum. A sequência de acordes que lhes serve de base é praticamente a mesma. É certo. Mas elas têm lá suas diferenças. Entre essas diferenças, o ritmo é a que mais se destaca, além do idioma em que cada uma é cantada. Uma é samba, carregada de swing e irreverência; e a outra, uma balada algo melancólica, gostosamente dolorida, como só as canções de Adele. Isso acrescenta complexidade à querela, dando margem para posições diferentes e opostas sobre o objeto da contenda.
Entre outras coisas, é por isso – e por uma questão de cautela e justiça – que usamos a palavra “suposto” no título desse artigo.
Se não sabemos ainda se se trata de plágio, por qual razão escrever um texto sobre isso? Ainda que haja dúvidas quanto ao plágio, de nossa parte, não há dúvida quanto à postura de certos fãs da cantora e é sobre isso que versamos nessas páginas: sobre os efeitos do colonialismo cultural entre nós, aflorados com força por conta da denúncia de plágio.
Em primeiro lugar, tenham ou não replicado a frase de que partimos (Quem é Martinho da Vila para questionar a Adele?), muitos fãs da cantora demonstram verdadeira ignorância quanto a quem seja Martinho da Vila. Sem intenção de fazer uma biografia, cabe esclarecer que ele é um de nossos mais importantes sambistas e compositores, autor de sucessos como Canta canta, minha gente, Disritmia, Casa de bamba, Madalena do Jucú, Ex-amor, entre inúmeros outros. Canções belas, forjadas por refinada e doce poesia, embaladas em ritmos envolventes e cativantes.
Ora, não sendo por outra coisa, o imbróglio do plágio demonstrou a verdadeira ignorância que alguns fãs de Adele têm em relação a esse grande compositor brasileiro. Como se pode supor, em parte, isso se deve a um elemento geracional. Lançada em 1995, Mulheres foi, talvez, o último grande sucesso de Martinho da Vila. Muitos dos fãs de Adele nem eram então nascidos.
De lá para cá… Faz tempo nosso compositor já não está tão em evidência. O mesmo se pode dizer do samba. Ambos perderam muita visibilidade ao longo dos últimos anos, marcados pelo domínio quase absoluto do sertanejo universitário.
Além disso, a maneira como hoje se conhece e se aprecia música é muito diferente do que ocorria em tempos pretéritos. Hoje, no tempo das plataformas digitais, o algoritmo tudo comanda, determinando amplamente o que conhecemos e o que ignoramos. Movido por uma perversa lógica, o algoritmo dá força ao que já tem força e condena o já sem forças. O resultado é a reprodução de mais do mesmo, ad nauseam.
Isso faz com que nossos jovens tenham muito mais chances de receber notificações de artistas como Adele do que de artistas brasileiros, como Martinho da Vila. De certo ângulo, as plataformas parecem democráticas. Independentemente da nacionalidade e das condições sociais, todos os artistas poder-iam nelas expor sua produção. Seus algoritmos parecem aleatórios. Perecem, mesmo, oferecer um portfólio repleto de opções diversificadas e infindas.
Entretanto, manietados de cima, o que fazem é alimentar uma dinâmica de produção e reprodução de colonialismo cultural. Toda liberdade de escolha aí experimentada é pura indução.
A seu modo, as plataformas contribuem para que nossa juventude ignore e, por assim escrever, fique de costas para nossa cultura nacional. E, assim, modelam significativamente o comportamento, a mentalidade e o gosto de nossos jovens. Estes crescem sem raízes em sua própria terra e cultura, tendendo a desprezar o que é local/nacional e a, deslumbrados, valorizar o que é de fora. Parafraseando Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), é justo dizê-los “desterrados em sua própria terra”.
É na esteira desse fenômeno, radicalizando-o, que agora ouvimos falar de “exilionismo” e “exilionistas”. Segundo definição de uma jovem que assim se apresenta nas redes sociais e que diz que “só falava em inglês dentro de casa”, “exilionista” é a pessoa que “se sente exilada no país em que nasceu”. De acordo com ela, “a gente – os exilionistas – nasce com uma nacionalidade, mas se identifica com outra nacionalidade”.
A jovem afirma que não é louca, com o que concordamos. O problema não é de loucura, e sim de colonialismo cultural. Bombardeada, desde cedo, com elementos de uma cultura estrangeira, que é apresentada como sendo superior à cultura vernácula, ela acabou sucumbindo ao assédio. Por fim, internalizou os valores estranhos. Agora, tais valores fazem parte do que ela é e/ou de como ela se entende. Jovens assim, diria Cazuza, “São caboclos querendo ser ingleses”.
Ah se a jovem valorizasse a cultura nacional… Ela poderia ouvir a canção Geração Coca-Cola da banda de rock nacional Legião urbana e entender, em chave libertadora, a crítica mordaz dirigida contra o colonialismo cultural ali presente:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos U.S.A., de nove as seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
(Geração Coca-cola, Renato Russo).
Não defendemos aqui, vejam bem, uma postura de isolacionismo, como quem busca mover para trás a roda do tempo, tentando em vão desespero encontrar um purismo cultural inexistente. Nossa cultura é híbrida, misturada desde sempre. Esse é seu elemento mais essencial. Não existe Brasil sem mistura, sem mestiçagem!
Advogamos, antes, uma postura de conhecimento e reconhecimento da cultura nacional. Só assim poderemos valorizar o que é de fora sem que, para isso, tenhamos que desprezar o que é de dentro, o que é nosso. Essa é a expressão mais acabada de vira-latismo cultural: ignorância e servilismo.
E como é bom saber dos Beatles e dos Stones, sem ignorar Os mutantes, Secos & molhados e Novos baianos. Como é salutar saber de Dua Lipa, Rihanna, Lady Gaga e Beyoncé, sem ignorar Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina e Alcione. Como é bom apreciar Bob Dylan, David Bowie, Stevie Wonder e Paul Simon, sem ignorar Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Raul Seixas, Belchior, Alceu Valença, Zé Geraldo, Lenine, Chico César. É fantástico saber de Pink Floyd, Led Zeppelin, Ramones e Nirvana, sem desconhecer Clube da esquina, Fundo de quintal, Titãs, Engenheiros do Hawaii, Sepultura…
Poderíamos multiplicar ainda mais os exemplos, elencando com justiça muitos outros grandes nomes. O baú de nosso tesouro cultural é riquíssimo. Um dos mais exuberantes do mundo. Sem sombra de dúvida. Supomos, contudo, que já nos fizemos entender.
Para finalizar, é imperativo tratar de outra dimensão do problema, a mais perversa: o endosso ao uso da violência e da expropriação por parte do colonizador contra suas vítimas, o que leva, inelutavelmente, à desumanização do colonizado.
A frase de que partimos (Quem é Martinho da Vila para questionar a Adele?), não apenas pode expressar uma ignorância quanto a quem é Martinho da Vila, como, mesmo, pode ser uma negação do direito de ele questionar a expropriação que esteja sofrendo ou venha a sofrer por parte de alguém considerado superior a ele. Com isso, reiteramos que o tema transcende Adele e Martinho da Vila, que aqui figuram quase como nomes alegóricos. O importante não é de quem tratamos, mas do fenômeno social de que tratamos.
Destaque-se que tal questionamento não parte sequer do expropriador, e sim de uns conterrâneos do expropriado, o que tende a endossar a expropriação. Dessa forma, o ato de violência e expropriação ou não é entendido como tal ou é revestido de uma aparente legitimidade.
Na lógica (de alguns) dos fãs de Adele, mesmo sendo expropriado de suas riquezas, dos frutos de seu trabalho, as vítimas não teriam o direito de questionar. Em verdade, talvez, tivessem até a obrigação de agradecer pela expropriação, sentindo-se privilegiados pela bênção da apropriação indevida. “Quem me dera, ao menos uma vez, ter de volta todo ouro que entreguei a quem conseguiu me convencer que era prova de amizade se alguém levasse embora até o que eu não tinha” (Índios, Renato Russo)…
Como vemos, o colonialismo cultural promove bem mais que a simples ignorância. Ele também perverte a identidade e a solidariedade. Ao invés de se solidarizarem com um irmão de nacionalidade, objeto da violência, solidarizam-se com o estrangeiro algoz, sujeito perpetrador da violência. Sua solidariedade não está com quem sofre a violência – mesmo se este é um irmão seu, um igual -, e sim com quem a pratica. Sua indignação não está voltada contra quem viola direitos, e sim contra quem, amparando-se na lei, procura se defender.
Cabe sublinhar que, sem deixar de ser crime, o plágio é uma maneira torta de reconhecimento e valorização. Se plágio é roubo, apropriação indevida, ele segue a lógica das outras formas de roubo e apropriações. Para falar de uma forma mais direta: é apropriação de algo que tem valor. É o valor da coisa, aliás, que justifica a apropriação.
Assim sendo, caso se confirme, o plágio de Adele mostrará que nem mesmo ela que é estrangeira estaria submetida à cegueira artístico-cultural a que estão submetidos (alguns de) seus fãs. Pois ela, mesmo olhando de longe, consegue ver qualidade na arte que eles ignoram e/ou desprezam, mesmo olhando de perto.
[1] Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018), A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021) e Ciência, educação e política, Vol. I e II (EaC Editor, 2024).
[2] O que manteremos para facilitar nossa comunicação.
[3] Mulheres, de Toninho Geraes e Million yers ago, de Adele.