Invadiram nossas terras
Roubaram nossas riquezas
Reis, rainhas, príncipes, princesas
(SEKO; BARRETO; PASSAPUSSO, 2019)
O dia 20 de novembro foi instituído pela Lei 12.519/2011, promulgada pela então presidenta do Brasil, Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT), como Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, porém é importante destacar que desde os anos 1970 essa data já vem sendo celebrada pelo Movimento Negro brasileiro, em oposição ao racismo e o apagamento histórico, tanto da história, quanto da cultura afrocentrada. Na área da Educação esta data foi instituída por meio da promulgação da Lei 10.639/2003, onde tornou-se obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, alterando a Lei 9.394/1996 em seu artigo 79-B, incluindo no calendário escolar o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Sempre que chega novembro inicia-se as discussões em torno da temática da “Consciência Negra”. Muitos desinformados insistem no discurso desmobilizador, infundado e perverso questionando o porquê não se falar em “consciência humana”. Ao ouvir esses questionamentos as pessoas que compõem o Movimento Negro brasileiro chegam a revirar os olhos (é involuntário).
É importante destacar que em um país historicamente racista, que participou ativamente do processo de desumanização das populações que viviam no continente africano por séculos, tem a necessidade e obrigação de resgatar essa humanidade que fora arrancada. Não existem condições em se falar de “consciência humana” quando parte da sociedade e seus descendentes foram e seguem sendo desumanizados de maneira sistemática diuturnamente.
Mesmo após o fim do processo escravagista imposto por mais de 300 anos, a sociedade brasileira continua a manter o pensamento escravocrata, insistindo na desumanização das populações negras. Isso acontece quando lhes obrigam a se adequar a uma sociedade eurocentrada[1], onde tudo atrelado a cultura dos povos africanos e afrodescendentes é negativo, mal, inferior, demonizado e feio, assim efetivando um processo ainda mais complexo de desumanização subjetivo, desumanizando suas existências, suas culturas, seus traços e formas de olhar o mundo.
Se a sociedade brasileira não consegue compreender a diversidade humana e respeitá-la, como que se quer falar em “consciência humana”?
Não existe “consciência humana” enquanto houver pessoas sendo desumanizadas pelo simples fato de serem negras. Para que se exista uma “consciência humana” é necessário existir uma consciência voltada para um antirracismo, para que assim todos possam conviver de fato em sociedade e suas humanidades sejam reconhecidas, fortalecidas e respeitadas. É necessária uma Consciência Negra para que se compreenda a importância das populações negras para a construção da sociedade brasileira, e para que ao longo dos anos suas humanidades lhes sejam restituídas.
É justamente no sentido da busca por uma consciência de que estas populações existem, contribuíram e contribuem para a formação da sociedade brasileira, que se torna necessário falar em Consciência Negra. É preciso trabalhar no seio da sociedade a consciência da importância da história e da cultura dos povos negros africanos e afro-brasileiros outrora sequestrados e traficados (a fim de uma exploração sem sentido, assim destituídos de sua humanidade) para o fortalecimento na formação do Estado brasileiro. É imprescindível fortalecer a consciência de seus descendentes, sobretudo de crianças negras, que logo cedo têm suas humanidades destituídas, quando são educadas a se enquadrar a um padrão branco-normativo de recusa de seus traços negroides (como cabelo, cor da pele, boca etc.).
A ideia de Consciência Negra está muito além de uma data específica, está atrelada ao sentido de devolver humanidade a essas populações, também para lembrar dos históricos processos de violências para que jamais se repitam. E para além disso, está para difundir e divulgar a grandeza e a riqueza das culturas afrocentradas que tanto contribuíram e contribuem na formação desse país chamado Brasil.
No dia 20 de novembro, como enunciado no início desse escrito, também é homenageado um dos maiores líderes negro quilombola que este país já teve, pela sua força, luta e resistência, Zumbi dos Palmares. Ele compreendia a importância de se colocar contra as estruturas de dominação, assim dando vida a sociedade intitulada Quilombo dos Palmares, onde negras e negros, buscavam liberdade para viver longe do horror imposto a eles, tornando-se um local de refúgio e de exaltação da cultura afrocentrada. Zumbi lutou até sua morte e ficou eternizado pela sua Consciência Negra, de compreender a importância de sua cultura e de não se curvar as imposições branco-eurocentradas, e por sua história de luta e resistência inspiradora. Consciência Negra também é resistir. Resistir às opressões, às imposições e até mesmo à dominação cultural. Resistir em favor da valorização das diversidades.
Portanto, a Consciência Negra está na forma que nos comportamos socialmente, no “bom dia” que damos as pessoas negras ao nosso redor, que em sua maioria ocupam cargos subalternizados em detrimento de um racismo estruturado na sociedade; está na forma que consumimos as artes e as culturas; está intrinsecamente relacionada à nossa forma de compreensão de mundo. Consciência Negra é também ir contra as imposições estruturais eurocentradas brancas. É compreender que apesar da população negra ter o maior percentual populacional, estes ainda ocupam de maneira irrisória os espaços de poder – um exemplo é o Supremo Tribunal Federal (STF) não existir nenhuma pessoa negra na sua composição atual. E para que se mude essa realidade, sem dúvida nenhuma é necessária uma Consciência Negra, para que possamos perceber que o racismo ainda opera na sociedade.
É preciso compreender uma Consciência Negra, recolocar os reis e as rainhas, príncipes e princesas africanos/as que tiveram seus territórios invadidos, saqueados e sequestrados, em seus devidos lugares, ou seja, é urgente a presença da população negra nos espaços de poder, porque dessa forma, construímos uma sociedade com uma consciência voltada para a diversidade e o respeito as culturas que compõem a sociedade brasileira.
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Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, Seção 1, p.1, 9 jan. 2003.
BRASIL. Lei Nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra. Diário Oficial da União. Brasília-DF, 11 de novembro de 2011.
SEKO, Marcelo; BARRETO, Roberto; PASSAPUSSO, Russo. Cabeça de Papel. In: BAIANASYSTEM. Single Cabeça de Papel. Salvador: BaianaSystem Máquina de Louco Editora, 2019.
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[1] Ou seja: uma sociedade que tem como referência os valores advindos do continente europeu no processo de colonização do país, colocando tal continente como o protagonista da história da humanidade e insistindo em apagar os processos históricos nos quais a Europa atuou na eliminação de diversas culturas, saberes e populações, que tanto contribuíram com a humanidade contemporânea.
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Fotomontagem Bandeira do Brasil, Bandeira Afro-Brasileira de Bruno Baptistelli (2020), Bandeira do Brasil da Mangueira (foto de Fernando Grilli, 2019), Okê Oxóssi de Abdias do Nascimento (1970) e Monumento Zumbi dos Palmares (1986, foto de Halley Oliveira, 2012)