O dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, além de ser uma data em homenagem a Zumbi dos Palmares, é também um momento para refletirmos sobre a luta, a resistência, a identidade e a contribuição do povo negro na história do Brasil. Como já houve publicações anteriores acerca desta data, desta vez buscarei destacar a trajetória da Comunidade Quilombola Forte Príncipe da Beira, localizada em Costa Marques, no estado de Rondônia.
Essa comunidade é um símbolo vivo de resistência dos negros e negras ao longo dos séculos. Sua história reforça a luta do povo quilombola pelo direito à terra e preservação do seu passado, no enfrentamento das desigualdades, na preservação da cultura e na defesa do território.
O que será apresentado neste texto é uma experiência vivida por alunos da Universidade Federal do Acre, que elaboraram um relatório etnográfico sobre a viagem à Comunidade quilombola da Irmandade Divino Espírito Santo, localizada em Costa Marques, no Forte Príncipe da Beira. A expedição foi realizada pelas turmas de Licenciatura e Bacharelado em História, sob orientação da professora Teresa Almeida Cruz e da professora Maria Ariadina Almeida Cidade.

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. ” – Walter Benjamin.
A famosa declaração de Walter Benjamin instiga uma reflexão profunda sobre a maneira como entendemos a história, a cultura e a memória. Segundo Benjamin, toda expressão cultural, mesmo a mais grandiosa ou festejada, contém traços de violência, exclusão ou dominação. Portanto, muitos dos feitos reconhecidos como patrimônio da humanidade foram alcançados à custa do sofrimento, de silenciamentos históricos e de estruturas de poder desiguais. Assim, devemos adotar uma perspectiva crítica sobre os marcos culturais e a história convencional. É necessário questionar quem criou essas narrativas, quem foi deixado de fora e quais lembranças foram negadas.
Diante disso, deu-se início à construção do Forte Príncipe da Beira. A construção do Forte do Príncipe da Beira tem uma história parecida com a dos mais relevantes fortes erguidos a oeste da linha de Tordesilhas. Ela expõe a perspectiva geopolítica de diplomatas portugueses que, beneficiando-se do Tratado de Madri, buscaram conquistar e assegurar a posse das terras, contrariando outros acordos que anteriormente negavam tais direitos. Este acordo, assinado em 1750, assegurou as atuais fronteiras do país, estabelecidas ainda durante o século XVIII.

As primeiras evidências da existência de indivíduos brancos no Vale do Guaporé datam do século XVII, época em que alguns exploradores, incluindo os paulistas sob a liderança de Raposo Tavares, exploraram a área em busca de ouro. A expedição de Francisco Mota Palheta, que introduziu as primeiras mudas de café no Brasil, também é mencionada em registros de 1722. Ele partiu de Belém, ultrapassou quedas d’água e corredeiras, cruzou o rio Mamoré e alcançou Santa Cruz de La Sierra. Em 1743, devido ao aumento na produção de ouro na área, o Reino de Portugal designou Antônio Rolim de Moura como Capitão-General. Ele foi o fundador e presidente da cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, situada às margens do rio Guaporé, que posteriormente se tornou a capital da então província de Mato Grosso. Em 1776, o então presidente da província, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, fundou às margens do Guaporé, a poucos quilômetros do antigo Fortim de Nossa Senhora da Conceição, o Forte do Príncipe da Beira. A construção visava consolidar o domínio português e afastar definitivamente os espanhóis da região, mantendo o controle e a soberania sobre o território.
Depois de mais de um século de descaso governamental, o Forte foi resgatado durante as missões do Marechal Rondon, em 1914. Contudo, a atenção do governo para a região só foi restabelecida na década de 1930. A instalação de um pelotão militar em 1932 transformou os residentes tradicionais, que ali residiam há gerações, em “invasores”, tolerados ou perseguidos. Nos anos 2000, as ações do Exército se intensificaram com foco na relocalização da comunidade. Nessa circunstância, os habitantes formaram uma associação representativa para lutar pelos seus direitos como remanescentes de quilombos: a Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo do Forte Príncipe da Beir

“A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas […]” – Pierre Nora.
Sob essa perspectiva de Pierre Nova, podemos compreender o papel fundamental da memória na construção historiográfica de algo ou alguém, ainda mais quando passa a ser um fenômeno coletivo e social. Além disso, quando tais memórias são construídas através de acontecimentos vividos, individualmente ou coletivamente, onde posteriormente nos trazem a ideia de pertencimento a um grupo ou lugar.
Portanto, é sob esta ótica que realizamos uma entrevista com a líder do Quilombo Forte Príncipe da Beira, Lucineide da Paz Pinheiro, de 38 anos, onde a mesma contou a sua história, a História do grande Elvis e também a história do próprio quilombo. A partir desse ponto, todos os relatos descritos foram retirados da entrevista realizada pelo grupo com a líder. Segundo Dona Lu, como é chamada pelos populares, informou que a comunidade é composta hoje com 60 famílias e 206 pessoas hoje, mas já teve cerca de 7 mil moradores dentro da comunidade e que, com o passar do tempo, vão indo embora para estudar e procurar trabalho. A história do quilombo começa quando iniciaram a construção do forte, construído em terras de uma senhora preta, chamada Ana Moreira, que foi expulsa pelos portugueses.
Os integrantes da comunidade sustentam que essa terra sempre lhes pertenceu e que, na realidade, foram os portugueses que a ocuparam, trazendo seus antepassados e indígenas escravizados para ajudar na construção do forte. Após a conclusão do forte, os portugueses juntaram um pequeno grupo de escravizados e saíram rumo à capital da província, abandonando um grupo demasiado de negros, que se espalharam pelo vale do Guaporé, fundando diversos quilombos.
Dona Lu afirma que, por muito tempo, a comunidade não se identificava como quilombola, apenas começando a entender que era remanescente de quilombola há pouco tempo, especialmente após o auto reconhecimento em 26 de junho de 2005, através da fundação palmares. Esse reconhecimento possibilitou que a comunidade expressasse sua identidade, cultura e a batalha que travaram para se manter no local, antes disso, os membros da comunidade não se autodeclararam como tal, uma vez que acreditavam que a terra onde residiam era propriedade do exército, que a havia invadido para erguer o forte, nos tempos imperiais e posteriormente haviam retornado ao local em 1930, ano de instalação do quartel em frente ao forte.

Essa circunstância resultou em um período de opressão, no qual os habitantes sofriam agressões, expulsões e ameaças do exército, com a intenção de expulsar os moradores das terras. Em 2019, a Justiça Federal homologou um acordo que estabelece as regras de convivência entre a comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira e o Exército, visando pôr fim a décadas de conflitos entre as partes envolvidas, as decisões eram tomadas sem a consulta ou opinião dos moradores. Percebe-se que, sob a ótica dos militares, os quilombolas eram tratados como estrangeiros em suas próprias terras.
Segundo Teresa Cruz, partir da década de 1980, no contexto das políticas integracionistas do Governo Militar, fazendeiros e madeireiros chegaram à região do Guaporé, iniciando conflitos com os moradores locais pela disputa da terra e de seus recursos. Além disso, a criação da Reserva Biológica do Guaporé, em 1984, uma unidade de conservação ambiental que não permite a interferência humana, ocorreu sem qualquer consulta à população que há séculos habitava a região. Essa decisão gerou grandes transtornos para os moradores, que sempre viveram livremente no local e, de repente, passaram a ser perseguidos por políticas ambientalistas. Em muitos casos, a força foi usada para expulsá-los, desrespeitando seus direitos constitucionais sobre os territórios tradicionais.
Para a líder, a batalha pela posse da terra é crucial para a sobrevivência e o futuro da comunidade. Sem essa validação jurídica, os residentes encontram vários desafios para obter políticas públicas e implementar melhorias fundamentais, como a edificação de escolas, centros de saúde e infraestrutura. O Relatório Técnico de Descrição (RTD) já foi divulgado, reacendendo a esperança de que o almejado título da terra esteja mais perto de se tornar realidade. Este progresso vai além de um simples documento: é a rota para assegurar dignidade, segurança e oportunidades para as futuras gerações. Pois, sem a posse legal da terra, a comunidade fica impedida de acessar fundos públicos, o que restringe ainda mais suas condições de vida. Isso engloba a edificação de infraestruturas fundamentais, tais como as já citadas, indispensáveis para o bem-estar da comunidade.
Portanto, o Forte do Príncipe da Beira também é um testemunho de barbárie, uma construção erguida com os corpos e a dor de indivíduos escravizados. Conforme Benjamin nos instrui, a maneira como preservamos e disseminamos essa cultura pode repetir o esquecimento daqueles que foram afetados. Esta conversa nos leva a ponderar sobre a necessidade urgente de reescrever a história de maneira mais equitativa e integral, reconhecendo as vidas que foram negligenciadas nas narrativas oficiais. A verdadeira importância da memória não se limita a preservar pedras e muros, mas também a dar voz aos que foram calados. O forte, mais do que um símbolo do domínio português, deve também ser um memorial da resistência, do sofrimento e da dignidade do povo negro que o construiu com suor e sangue.
Escrito por:

Dandara Cesar Dantas – Acadêmica do 8º período de Bacharelado em História da Universidade Federal do Acre (Ufac). Membro/ redatora da Coluna Escavando História e monitora voluntária da disciplina CFCH665 – Historiografia Brasileira.




