Fonte: Rosa Tenório, 2017.
Apoiando-se na Lei 10.639/03[i], que alterou a Lei 9.394/1996 em seu artigo 26 “A”, estabelecendo uma obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica, vemos na literatura uma forma de combater o racismo e outras formas de preconceito, pois são nos anos iniciais da vida escolar que a criança começa a ter contato mais direto com o mundo e a manter relações com as diferentes pessoas. De acordo com Munanga[ii], a escola é “um espaço público, e o aluno está ali para aprender” e é a partir da literatura que buscamos contribuir na/para a formação intelectual, cidadã e social das crianças. Segundo Nelly Novais Coelho[iii] literatura infantil possibilita a construção de uma nova mentalidade, desenvolvimento emocional, além de proporcionar uma educação humanística.
Dessa forma, contribuímos para a diversificação do conhecimento sobre os negros, nossa cultura, resistências e o legado que se mantém vivo na cultura brasileira, seja ele material ou imaterial. É assim que entramos em conformidade no que é proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [iv] ao buscarmos “participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas”.
A Educação Infantil é voltada às crianças com idade até os seus primeiros seis anos completos, ou seja, é para a primeira infância. E as opções de livros que chegam aos pequenos e às pequenas precisam contemplar a individualidade de cada um(a) e celebrar a diversidade de identidades que compõe a nossa sociedade. A esse respeito, concordamos com o que Pereira e Dias[v] dizem sobre pensar uma literatura negra em sala de aula é possibilitar a construção da identidade das crianças negras de forma positiva; além de possibilitar a valorização das diferenças, aprender sobre si e sobre o outro.
A obra “A rainha Dandara e a beleza dos cabelos e a beleza dos cabelos crespos” é de autoria da intelectual negra brasileira, professora e pesquisadora doutora Dayse Cabral de Moura. Em 2017, a escritora nos presenteou com essa importante obra de literatura infanto-juvenil, com ênfase em cultura africana e afro-brasileira e conta com lindas ilustrações feitas por Rosa Maria Farias Tenório.
Essa obra é um grande aliado para a promoção de igualdade racial, para o enfrentamento ao racismo no ambiente escolar e para o fortalecimento da luta antirracista. Possui 23 páginas, com lindas e coloridas ilustrações, personagens desenhadas de modo que valorize as pessoas negras, o que ajuda a prender e a chamar a atenção das crianças para a leitura. A obra traz uma dedicatória à mãe da professora Dayse: “in memorian de Severina Cabral de Moura, a vovó Bilica, uma grande rainha contadora de histórias, que partiu para ser estrela”, assim, o livro inicia com uma demonstração de afeto e respeito às nossas mais velhas, aos nossos mais velhos, às nossas e aos nossos ancestrais e que precisa ser estimulado desde os nossos primeiros anos de vida.
O enredo se passa no reino de Angola, apresentando Dandara como uma rainha de lindos cabelos crespos e que é amiga de todos(as). As personagens da história são bem apresentadas e ilustradas: cabelos com diversas alternativas de penteados, com enfeites ou com acessórios que remetem à ancestralidade, roupas estampadas e com artes africanas, alguns modelos de moradias e vegetação típica do continente africano. Na história há o relato de uma situação de racismo vivida por uma das personagens, a Luanda, ao mesmo tempo em que apresenta soluções de enfrentamento ao racismo experienciado pela criança. Sua mãe, Aqualtune, percebe e pede auxílio à rainha Dandara e juntas resolvem a situação e a história termina com um final feliz.
Pereira e Diasv, a respeito das produções sobre história e cultura africana e afro-brasileira, afirmam: “Embora crescente a produção, ela não está presente nos ambientes educacionais e nem nas práticas familiares de leitura de modo paritário à literatura que apresenta narrativas eurocentradas e personagens brancos”.
E essa ainda é uma realidade que enfrentamos: as produções literárias que contém abordagens descolonizadas da identidade e cultura africana e afro-brasileira não são muito presentes nos lares e nos espaços educativos. Os acessos à essas literaturas permanecem insatisfatórios, seja por parte das famílias ou por parte das instituições educativas.
A obra da professora Dayse Moura pode nos possibilita trabalhar representatividade e identidade de forma que valorize a pessoa negra, trazendo uma perspectiva totalmente diferente da que temos acesso. Proporcionando a valorização de nossa ancestralidade, dos cabelos crespos, de nossas cores e de nossa história.
O livro pode ser utilizado em contações para mostrar a África como berço da humanidade e do conhecimento, pois traz nomes de mulheres negras que foram importantes para história: Dandara e Aqualtune; além de trazer o país Angola e sua capital, já que a protagonista da história tem o nome da capital de Angola, Luanda. A riqueza da história pode proporcionar diversos momentos em sala de aula, a exemplo de atividades sobre os países que formam o continente africano, rodas de leitura, rodas de conversas, recontos, trabalhar identidade, rodas de afeto (estimulando o elogio entre as crianças), oficina de penteados (a obra traz várias sugestões de penteados), entre outras atividades.
O livro em si já traz algumas práticas que podem ser realizadas com as crianças, como podemos observar nos trechos: “todas as crianças que participavam ganhavam um lindo espelho dourado, para que, ao verem suas imagens, nunca se esquecessem de sua beleza e de suas origens”[vi]. Essa prática pode ser levada para a sala de aula e complementada com uma roda de conversa sobre identidade e ancestralidade.
Na obra que analisamos, a autora trabalha um elemento corporal, o cabelo, entretanto, o(a) educador(a) pode utilizar outros elementos corporais em suas aulas. Nas palavras de Nilma Lino Gomes[vii], “o entendimento da simbologia do corpo negro e dos sentidos da manipulação de suas diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser um dos caminhos para a compreensão da identidade negra em nossa sociedade.”.
Educadores e educadoras precisam compreender que nossos cabelos trazem muito de nossa história e de nosso pertencimento ancestral e valorizar esses aspectos nas aulas para estimular o respeito é uma forma de combater o racismo na Educação.
Para que tenhamos êxito em nossa luta em favor de igualdade racial e no enfrentamento a todas as formas de racismo e de desigualdades é necessário que negros(as) e não negros(as) tenham o compromisso e estejam engajados(as) na luta antirracista. Só assim as estruturas construídas serão transformadas.
Apresentar e trazer a obra “A rainha Dandara e beleza dos cabelos crespos” como potente ferramenta de valorização da identidade e cultura africana e afro-brasileira e sugerir formas de uso foi o modo que encontramos para contribuir com a promoção de igualdade racial nos espaços educativos voltados à primeira infância. A seleção de obras que cooperem para uma formação positivada da identidade de nossas crianças é de grande importância para o desenvolvimento de todos os aspectos da vida: cognitivo, físico, afetivo e social. A apresentação de personagens negros(as) de forma não inferiorizada é um direito e precisamos proporcionar uma reversão sobre o olhar que construímos do ser negro(a).
É preciso levar uma ressignificação à imagem que aprendemos a construir sobre as pessoas negras. Para que os sofrimentos trazidos por essas práticas racistas sejam diminuídos é necessário que as escolhas literárias celebrem a negritude, e celebrar a negritude é um ato de valorização de nossa ancestralidade.
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[i] BRASIL. Lei 10.639/2003. Brasília: Senado Federal, 2003.
[ii] MUNANGA, Kabengele. Racismo: esta luta é de todos. Raça Brasil. Disponível em: https://www.construirnoticias.com.br/kabengele-munanga-racismo-esta-luta-e-de-todos/. Acesso em: 23 de abr. 2022.
[iii] COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/ Juvenil. São Paulo, Ática, 1991.
[iv] BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
[v] PEREIRA, Sara da Silva; DIAS, Lucimar Rosa. Entre colos e afetos: a hora e a vez dos bebês na literatura infantil de temática da cultura africana e afro-brasileira. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 12, n. 33, p. 178-196, ago. 2020. ISSN 2177-2770. Disponível em: https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1008. Acesso em: 23 de o abril de 2022.
[vi] MOURA, Dayse Cabral de. A rainha Dandara e a beleza dos cabelos crespos. Recife, Editora UFPE, 2017.
[vii] GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan/jun. 2003.
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Jardel Silva França, Mestrando em Letras: linguagem e identidade, pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Especialista em Educação Especial Inclusiva, pela Faculdade de Educação Superior Euclides da Cunha (Inec). Licenciado em História (Ufac). Membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).