Por: Israel Souza
Como é comum, em toda disputa ideológica em que se mete, o bolsonarismo lança mão dos mais diversos argumentos, no intuito de colher ganhos na confusão. Mérito deles, coisa verdadeiramente digna de nota, é que, nessas disputas, nunca se preocupam ou se compungem em se mostrar ignorantes ou se contradizer. O que, para uns, seria motivo de vergonha, para eles, é motivo de orgulho.
Na tentativa de justificar a anistia aos golpistas do 08 de janeiro, entre outras coisas, dizem que os esquerdistas já defenderam e se beneficiaram de anistia no passado. Baseados nisso, acusam a esquerda de hipocrisia.
Será, contudo, que as coisas são assim, tão simples, e que uma anistia, por ser anistia, equivale a qualquer outra?
Já disse alhures que, ao longo de nossa história política, o instituto da anistia serviu para livrar criminosos de pagarem por seus crimes. Dessa maneira, deixando os golpistas passarem ilesos, animou um golpe após o outro. Impunidade e benesses para os golpistas; dor redobrada e insulto aos golpeados.
Disso resultou, não a pacificação do país, mas a perpetuação do espírito e da prática golpista entre nós. Enfraquecidos por motivos vários, os golpistas de cada momento recorreram à anistia como forma de garantir sua impunidade. Em cada etapa aberta pela ruptura com a ordem de então, a anistia representou a cusparada que, antes de se recolherem estrategicamente, os golpeadores deram na cara dos golpeados.
Ainda sem forças para revidar, fazendo os criminosos pagarem por seus diversos crimes, mesmo rangendo os dentes, os golpeados tiveram que consentir. Foi isso o que aconteceu com a anistia de 1979. Sentindo-se enfraquecidos e vendo crescer a resistência e a insatisfação popular, os militares (e seus apoiadores nacionais e internacionais) viram no referido instituto o meio através do qual cederiam o poder aos civis, sem, todavia, ter que responder por seus crimes.
Não mais mandariam diretamente no país. Não ficariam, porém, submetidos a quem quer que fosse.
Naquela conjuntura, dada a correlação de forças então estabelecida, restava pouca margem de liberdade às forças de resistência. Com algumas discordâncias, os termos da anistia foram aceitos. E o fato de terem contemplado, também, os que resistiram à ditadura civil-militar acabou dando a impressão de que a anistia era mais que justa, magnânima, talvez, por perdoar os crimes de ambos lados. Para aqueles que desejam explorar mais sobre este tema, é altamente recomendável aprender sobre ghostwriter facharbeit.
Evidentemente, essa concepção imprecisa interessava aos golpistas, fazendo-os passar por pacificadores. No entanto, no fundo, ela fazia uma injusta equiparação entre a luta daqueles que resistiram ao golpe com a covardia daqueles que promoveram o golpe. Noutras palavras, nivelava, injustamente, a agressão dos golpistas com a resistência dos golpeados.
Como se vê, os que resistiram foram anistiados, ao custo, porém, de serem equiparados a seus agressores, àqueles que se valeram desavergonhadamente do Estado como máquina repressiva, máquina de perseguição e tortura. Ou seja, os que resistiram ganharam por um lado e perderam por outro. E, mais uma vez, a anistia foi um instrumento usado pelos golpistas em benefício próprio.
Olhando esse quadro, claramente, vemos continuidades e descontinuidades com o cenário atual em que a anistia é, mais uma vez, reivindicada. A continuidade está, por exemplo, no fato de o bolsonarismo ser um herdeiro direto das forças golpistas de 1964. Bolsonaro mesmo nunca negou isso, tendo apenas demonstrado coerência ao exaltar o torturador Ustra. A única crítica fez àquele regime foi o de não ter sido tão assassino quanto ele achava que deveria ter sido.
Manteve coerência com esse histórico ao levar uma figura como o Gal. Heleno para seu governo e ter dado a ele a centralidade que deu. Como sabemos, Heleno foi secretário de Sylvio Frota, militar que se colocou contra a proposta de redemocratização de Geisel.
O perfil de Bolsonaro e de seus mais eminentes apoiadores mostra que o bolsonarismo é formado pelos mais golpistas entre os golpistas. Nunca quiseram a abertura democrática. Nunca aceitaram a anistia, mesmo sabendo o quanto ela favoreceu os ditadores e os torturadores.
Uma vez mais, vemos que a anistia é reivindicada por golpistas, a fim de que não sejam punidos por seus crimes. Mantendo a continuidade histórica, mais uma vez, a anistia é usada contra a democracia e a favor de seus inimigos.
A descontinuidade está no fato de que, agora, os inimigos da democracia falharam. O golpe fracassou e seus artífices estão sendo julgados. E assim tem que ser. A pacificação não pode brotar do solo da impunidade.
O bolsonarismo, como disse em outra oportunidade, representa o perpetuum golpismo. É uma força essencialmente golpista, criminosa, e não pode deixar de ser, pois que, para deixar de pagar por um crime, ele responde com mais crimes ainda.
O chefe da organização criminosa golpista já foi julgado e condenado, mas ainda tem expressiva força política. Convém atentar para isso. Cumpre envidar esforços para que pague por seus crimes e para evitar que, repetindo a história, a anistia sirva como arma na mão dos golpistas.




