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Por Bruna Carolini Barbosa
É inegável que as redes sociais compõem grande parte de nossas interações cotidianas. Como um espaço que garante autoria e posicionamento sobre os mais diversos assuntos, não é de se espantar que ganhem visibilidade ações e discursos de ódio, entre eles, discursos racistas. Refletindo a própria configuração social, tanto em postagens quanto em comentários – endossados por milhares de likes – as redes sociais tornam-se uma arena em que disputam, de um lado, diferentes manifestações de racismo e defesa do mito da democracia racial, assunto já discutido nesta coluna (“Racismo e o mito da Democracia Racial no Brasil, em Gilberto Freyre) e, de outro lado, criadores de conteúdo que buscam estratégias para o Letramento Racial Crítico.
Tendo como um dos nomes mais proeminentes a professora doutora Aparecida de Jesus Ferreira, o Letramento Racial Crítico é uma prática em que se objetiva refletir sobre as relações raciais, sobre raça, racismo e sobre como essas questões estão relacionadas às nossas experiências e à sociedade, além de buscar entendimento sobre a complexidade do tecido social marcado pela racialização dos corpos. A autora trata do assunto em diferentes textos e vídeos, vários deles com acesso livre, inclusive. Letramento Racial Crítico não é apenas uma teoria acadêmica, é uma necessidade, sobretudo se considerarmos diferentes episódios racistas sobre os quais tomamos conhecimento dia após dia. No ambiente digital, há vários perfis de criadores de conteúdos que se comprometem com a discussão das pautas raciais, contribuindo para a compreensão e para o avanço da agenda antirracista. Entretanto, como um espaço aberto, há também os que prestam desserviço.
Nas últimas semanas acompanhamos uma polêmica envolvendo duas influenciadoras digitais que “presentearam” crianças negras com macacos de pelúcia e bananas. Somando as redes sociais nas quais possuem contas, as “desinfluenciadoras” acumulam milhões de seguidores. Basta uma olhada rápida nos comentários que é possível observar pessoas indignadas com a violência do gesto e outras que minimizam o caráter racista e criminoso da ação. Essa divergência de pensamentos evidencia e confirma a necessidade do Letramento Racial Crítico.
Ainda sem compreenderem as diferentes manifestações do racismo, incontáveis pessoas acreditam que o humor ou mesmo a arte são espaços intocáveis e acusam de “mi mi mi” aqueles que tentam lançar entendimento sobre essa problemática. Nesse caso, em específico, o racismo recreativo, que ridicularizou e desumanizou as crianças negras, e a exposição de suas imagens configuram crimes. Os conteúdos foram publicados e, mesmo com inúmeras denúncias às plataformas, continuou disponível para visualização por um bom tempo, o que aponta mais uma nuance do problema: o racismo algorítmico.
Termo ainda recente, o racismo algorítmico é discutido pelo pesquisador Tarcízio Silva, no livro “Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais”. O autor explora o modo como redes sociais digitais, aplicativos e inteligência artificial contribuem para a manutenção e intensificação do racismo na sociedade, interferindo, inclusive, na forma como os sujeitos compreendem o mundo. Quanto mais likes, mais engajamento, maior o alcance. Um vídeo como esse – independentemente de o engajamento ser positivo ou negativo – foi amplamente distribuído pelas plataformas, por exemplo.
No caso das desinfluenciadoras, o racismo recreativo disfarçado de brincadeira não saiu ileso. Centenas de criadores de conteúdos comprometidos com a luta antirracista, incansavelmente, denunciaram o crime, entre eles, Fayda Belo, mulher negra, advogada especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídio. A advogada, com perfil voltado às discussões sobre assuntos como racismo, misoginia, homofobia, entre outros, convocou um mutirão – prática comum nas redes – para que seguidores formalizassem a denúncia no Ministério Público Federal, o que contribuiu fortemente para o desfecho que temos acompanhado nos últimos dias: investigação em curso e bloqueio temporário (6 meses) das redes sociais das investigadas, bem como proibição da criação de novas contas, sob pena de multa de R$5 mil por dia em caso de descumprimento. Contudo, é ingenuidade pensar que este caso exemplar dê conta de inibir a violência racial nas redes.
Uma série de estratégias jurídicas podem e devem ser mobilizadas para a criminalização e punição em crimes de racismo. Paralelamente, o Letramento Racial Crítico deve ser cada vez mais intenso, como ferramenta educadora em todos os espaços, inclusive os virtuais. É preciso desconstruir a ideia de neutralidade das redes e ressignificar esses espaços, dando visibilidade e engajamento aos conteúdos que estão comprometidos com a pauta antirracista e outras temáticas de relevância social, na tentativa de subverter a lógica matemática e perversa dos algoritmos.
Referências:
FERREIRA, Aparecida de Jesus. Letramento Racial Crítico através das narrativas autobiográficas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015.
SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Editora Sesc, 2022.
Bruna Carolini Barbosa é docente na Universidade Federal do Acre (Ufac) e membra do Neabi-Ufac. É doutora em Estudos da Linguagem e pesquisadora dos Multiletramentos e Antirracismo no Ensino de Línguas