Por Joely do Rio
Em pesquisa feita pelo Jornal do Acre 1ª edição (2020), sobre moradores em situação de rua, apenas em Rio Branco-AC/Amazônia Sul Ocidental Brasileira, havia aproximadamente 180 pessoas utilizando as ruas como moradia; no estado do Acre, segundo o Ministério Público, cerca de 800 pessoas sobreviviam em condições de vulnerabilidade social, sendo a maioria composta por homens[1]. Em muitos dos casos, são pessoas alcoólatras, usuárias de entorpecentes, imigrantes ou desempregadas que gastam a vida, muitas vezes, sem nenhuma renda econômica. Vivenciam desemprego, miséria, conflitos familiares, assassinatos, brigas; alguns pertencem ao grupo de saída dos presídios. Pessoas tidas como mendigas, perigosas, viciadas, bandidas e vagabundas.
Homens, crianças e idosos, em sua maioria negros, mendigam na biqueira de semáforos, igrejas, universidades, lojas, supermercados, bancos, lotéricas, restaurantes, rodoviárias, praças, cemitérios e/ou lixões, enquanto uma parte da sociedade continua no ir e vir do trabalho para suas moradias, ou para aquilo que nomeiam “casa”. Quem são o(a)s marginalizado(a)s?
Especificamente no caso das mulheres em situação de rua, a situação é ainda mais agravante. Elas, além de vivenciarem casos semelhantes aos dos homens, ainda são vítimas de estupros, gravidez indesejada, exploração sexual e violência doméstica, não apenas de seus companheiros, mas de outros homens que se encontram na mesma condição de vulnerabilidade social. Quem são as maiores vítimas de violência doméstica?
Joanas, Marias, Anas, Manoelas, Patrícias. Mulheres, em sua maioria negras, que gastam a vida em subtrabalhos para sustentar a família. Mães solo, chefes de família, onde muitas não têm uma rede de apoio familiar ou do Estado e, ainda assim, não deixam a peteca cair, mantidas por um resquício de força e resiliência. A exemplo desse dado, Dôra (nome fictício), uma das trabalhadoras contratadas por uma das empresas terceirizadas que atende na Universidade Federal do Acre (Ufac).
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[1] Local específico nas proximidades de outro.
[1] Matéria G1. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2020/07/04/rio-branco-tem-mais-de-180-moradores-de-rua-aponta-assistencia-social.ghtml Acesso: 17 de junh. de 2024
Dôra, dentre tantas trabalhadoras, uma mulher negra, no vai e vem diário de casa para o trabalho na Ufac, durante uma conversa informal, comentou sobre a escala que cumpre no turno de trabalho: “eu entro uma da tarde e saio dez na noite. Pego ônibus, crio meus filhos sozinha”. Docentes, técnico(a)s, aluno(a)s e pessoas pertencentes a outras categorias no vai e vem das salas, dos banheiros, dos corredores, dos quiosques, enquanto Dôra varre, passa pano e encera o chão, lava banheiro, recolhe lixo dos cestos. Quem são o(a)s vigiado(a)s?
Faça chuva, faça sol, friagem ou ventania, Dôras pegam ônibus para o ir e vir de casa para o trabalho. Quantas são as Dôras? Dôra é invisível ou é visível para a Ufac? Passando a vista pela nomenclatura de blocos ufaquianos, observa-se nome e sobrenome de antigos políticos, empresários, “homens da sociedade” conhecidos desde épocas da Ditadura. Quem são os visíveis na Ufac? Uma instituição pública, nas Amazônias, que forma e recebe, todos os anos, alunos e alunas da graduação e da pós-graduação. Cursos de medicina, engenharia e direito, ocupados, em sua maioria, por pessoas brancas. Frequentada por aquele(a)s que desejam fazer atividades físicas, para amantes de fotografias ou, simplesmente, turistas e pessoas de determinadas classes sociais que visitam as capivaras e a jardinagem, além de se encantarem com os pirarucus. Um espaço rodeado por luzes que refletem, no período da noite, a sigla Ufac. Um quarteto de bandeiras – Brasil, Estado, Rio Branco e Ufac. Não obstante, o chafariz luminoso que chama atenção de qualquer mortal desavisado.
Dôras vestem calças jeans, camisas cor azul marinho e botas de borracha. Dôras carregam balde com produtos de limpeza, em uma das mãos e, na outra, vassoura e rodo. Dôras moram em bairros periféricos, amontoam-se em transportes coletivos, (sobre)vivem em um espaço onde há muita coisa, talvez bem íntimas para muitos de nós: esgoto a céu aberto, vielas, animais esqueléticos e abandonados que disputam restos em decomposição, ruas sem asfalto, escuridão noturna, postos de saúde sem medicamentos e sem profissionais da área, praças sem manutenção, violências. Você conhece alguma Dôra?
Assim como tantas Dôras sobreviventes, racializadas, marginalizadas e excluídas da sociedade, em condições contrárias à de cidadania, Dôra vê a vida passar e a vida passa por Dôra do jeito que pode e do jeito que dá, exposta à discriminação racial, social e de gênero. Quantas Dôras, Marias, Paulas, Joanas, Mercedes, Antônias sobrevivem nos trabalhos, nas ruas ou naquilo que nomeiam moradia – favelas, periferias, morros, viadutos, terminais urbanos, praças e biqueiras de setores públicos? Quantas Lúcias, Terezas, Raimundas, Jéssicas, Mateus, Alziras passam, diariamente, por nós e quanto(a)s de nós passam, diariamente, por Joaquinas, Camilas, Conceições, Carolinas?
Neste mês de julho, especificamente, o próximo dia 25, data em que se comemora o dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, um momento oportuno para refletirmos e problematizarmos quem são as mulheres que vão para a estatística de feminicídio, violência doméstica, presídios. Quem são as mulheres que vivenciam situações de alagações de suas moradias, trabalhos de limpeza nas residências particulares, nos setores terceirizados, nos terminais urbanos, nas ruas, nas faxinas, nas cozinhas, nos semáforos, ou ainda, aninhando crianças, trabalhos de reciclagem, latas de lixo e pedintes nas biqueiras e semáforos?
Uma data oportuna para que a sociedade se movimente e mova, cada vez mais, estruturas de poder que fingem não ver a desigualdade social, racial e de gênero que marca a sociedade brasileira. Uma sociedade que parece desconhecer, ou apenas “faz de conta”, quem são os tentáculos na informalidade, nos ossos de açougue, nas balas perdidas, na gravidez precoce, nas clínicas clandestinas de aborto, nas perseguições policiais, nas vigilâncias de supermercados e shoppings. Portanto, me parece que, oportunizar este debate em outros espaços, como os da Ufac e bancadas jurídicas, ao longo do ano e não apenas em datas específicas, pode vir a ser uma luz no fim do túnel. Em outras palavras, opções de alternativas para a criação/ampliação de mecanismos e políticas públicas para o enfrentamento da discriminação, do racismo e do sexismo.
Mulheres Negras Latino-Americanas, Presente!
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CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis : Vozes, 2014.
HOOKS, bell, 1952 – 2021. Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática. Tradução Bhuvi Libanio. São Paulo : Elefante, 2020.
KILOMBA, Grada, 1968. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro : Cobogó, 2019.
Matéria G1. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2020/07/04/rio-branco-tem-mais-de-180-moradores-de-rua-aponta-assistencia-social.ghtml Acesso: 17 de junh. de 2024.
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Quilombola de Pedras Negras, no Vale do Guaporé-RO. Doutoranda em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI/Ufac). Mestrado em História e Estudos Culturais. Licenciatura em Letras e suas respectivas Literaturas. Licenciatura em História. Membra no Grupo de Estudo e Pesquisas Interdisciplinares Afro e Amazônicos (Gepiaa). Membra no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac). Membra no Grupo de Estudos e Pesquisas Culturalidades e Historicidades Africanas e da Diáspora Negra (Chade). Membra na Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Representante do Movimento Negro na Comissão Permanente de Heteroidentificação (Neabi/Ufac).