Por Eduardo Silveira Netto Nunes e Liliane Araújo Maia Puyanawa
“Quando pensamos na possibilidade de um tempo além deste, estamos sonhando com um mundo onde nós, humanos, teremos que estar reconfigurados para poder circular. Vamos ter de produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos, para sermos acolhidos por esse mundo e podermos habitar”
Ailton Krenak
A vida não é útil. (2020, p. 47)
Um dos grandes esforços empreendidos pelo país Brasil, desde sua fundação em 1822, foi o de explorar, inviabilizar, invisibilizar, desaparecer, exterminar e acabar com os povos indígenas, seus modos de viver e suas relações com o sagrado. Também parte desse esforço foi o de fazer desaparecer elementos identitários, de coesão e de reprodução desses povos. Antes do país Brasil, também o império colonial Português atuou de modo intenso para explorar, exterminar e fazer a aculturação dos milhares de povos indígenas presentes nesse território hoje conhecido como brasileiro.
O Brasil “Brasil” e o “Brasil Português”, a despeito da sua intensa e contínua violência, tonalizada e suavizada em dado momento por instituições como Serviço de Proteção ao Índio (SPI) extinta em 1967, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), renomeada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas, não lograram de todo o êxito ambicionado, qual seja, converter o país em um território sem os povos indígenas!
Importante lembrar que as iniciativas em exterminar os povos indígenas, seja por ação ou omissão do Estado Brasileiro, não estiveram restritos ao passado distante, ao tempo das caravelas, ou ainda ao tempo da Ditadura civil-militar-empresarial, em geral, observados com escândalo pela quantidade de maldades e arbitrariedades levadas a termo, também em tempos recentes, entre 2018 e 2022, sob o governo de reacionários, anti-indígenas, colonialistas e que flertavam com o fascismo, como o conduzido por figuras malévolas como um certo ex-capitão, inúmeras ações buscaram colaborar com a odiosa obra de converter o Brasil em um país sem indígenas!
Mas, a despeito dessa contínua tentativa de acabar com os indígenas, os diferentes povos resistiram, resistem e resistirão! Desde o período colonial, de norte a sul do território, os povos indígenas desenvolveram estratégias, práticas e iniciativas que buscavam impor limites, condicionar alianças, avaliar, dentro das condições, qual caminho seguir, opor-se à intentos de dominação e aniquilamento, lutar para garantir territórios, direitos e a vida.
No presente, expressões dessa re-existência acabam reverberando de diversas maneiras: o aumento de pessoas autodeclaradas indígenas; a demarcação de terras indígenas; a consolidação de organizações e pautas políticas advinda dos povos indígenas, por eles mesmos,
Observando dados dos Censos Populacionais do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), desde 1991, é possível perceber que em 1991 294 mil pessoas se autodeclararam indígenas, enquanto que, em 2022, 1,7 milhões se autodeclararam como pertencente a alguma etnia.
Censo:
1991 – 294 mil
2000 – 734 mil
2010 – 900 mil
2022 – 1,7 milhões
Se autodeclarar indígena, inevitavelmente é fruto de pelo menos essas circunstâncias: a reafirmação e reconstrução das identidades dos diferentes povos; e, o reconhecimento de que ser e se fazer indígena expressa um lugar político legítimo no país.
O incremento de territórios declarados indígenas (homologados, o que quer dizer, efetivamente reconhecidos como Território Indígena) que, de 1985 a 2024, totalizam um total de 477 homologações e regularizações (segundo a FUNAI), sendo que, a afirmação dos mesmos acaba viabilizando a construção de projetos de presente, passado e futuro, nos mesmos, até porque, à diferença da mentalidade ocidentalizada que coisifica a terra como um bem de valor monetário, uma mercadoria, para os povos indígenas, o território é suporte para vínculos profundos da ancestralidade com o presente, tendo profunda dimensão espiritual e de sobrevivência. Ainda nesse tema, existem 259 territórios em processo de análise e outros 490 (segundo a FUNAI) com medidas reivindicativas para abertura de processo de demarcação.
A organização da luta e re-existência dos povos indígenas está cada vez mais estruturada, convergindo em pautas e alianças entre povos e entidades que potencializam a concretização e visibilidade das reivindicações, das denúncias, das articulações e das vitórias. Através das entidades, os diferentes povos falam e exigem em voz própria, sem demandar intermediários, afirmando suas autonomias e identidades coletivas. Entre elas, destacam-se a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a APOINME: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo, Hutukara – Associação Yanomami. Uma das iniciativas mais representativas da convergência dessas lutas está expressa na organização anual do Acampamento Terra Livre (ATL), dentro do chamado Abril Indígena, em Brasília, que atualiza anualmente, as lutas e pautas indígenas.
No ano de 2024 celebra a sua 20° edição desde a sua primeira edição em 2004 que foram realizadas as principais reivindicações: priorização a demarcação de terras, criação do Conselho Superior de Política Indigenista, contra as invasões territoriais e violência contra os indígenas além de assegurar a participação dos povos na discussão das políticas que lhes dizem respeito. Após longos períodos de resistência, os povos indígenas, mesmo após a promulgação da constituição brasileira de 1988, que possui dois artigos que lhes dizem respeito (231 – 232) ainda não atendeu a necessidade dos povos indígena do Brasil. O tema do Acampamento Terra Livre de 2024 “Nosso Marco é ancestral, sempre estivemos aqui” remete aos atuais problemas enfrentados pelos povos indígenas como o Marco Temporal. O Acampamento Terra Livre inaugurou um marco histórico para o movimento indígena no Brasil demonstrando que mesmo com Leis, decretos, invasões, violações, os indígenas não aceitam pacificamente essas mudanças e resistem de todas as formas.
Outra expressão do caminhar na conformação de uma Brasil aldeado, se dá através dos processos de educação indígena e intercultural, de um lado, e do acesso ao ensino superior, ainda predominantemente eurocentrado e colonizado, de outro lado. No caso da educação superior foi significativo o aumento das matrículas de pessoas declaradas indígenas, resultado das políticas de cotas na Universidade e do incremento da educação básica. Em 2000, eram 4400 alun@s indígenas; em 2010, 11.300; em 2016, 49 mil; 2021, 46 mil (Dados Ministério da Educação). Números que, se bem verdade, são importantes, representaram, em 2021, apenas 0,5% do total de alun@s do ensino superior (segundo o Instituto Semesp). No Acre chama a atenção por ser aquele com o menor percentual do país quanto ao percentual de estudantes indígenas na Universidade, pois representam apenas 0,22% das matrículas, sendo que o estado é o quarto maior em termos de população indígena comparada com a geral, pois essa população representa 3,82% do total no estado (IBGE). No Acre, mesmo sendo um estado com menor percentual de alunos indígenas na universidade, ainda sim alunos indígenas estão conseguindo ingressar.
Ah, e o 19 de abril, e a tradicional “semana do índio” (se ao menos chamasse de semana dos indígenas!) nas escolas? Sim, claro! Não podemos esquecer! Anualmente, nesse dia e semana, projeta-se alguma visibilidade para as causas e lutas dos povos indígenas, povos estes que nos restantes 364 dias do ano e desde 1500 re-existem na luta para serem quem são, como querem ser e para não desaparecer!
Eles estão, apesar de todas as nefastas iniciativas destruí-los, aqui, e continuarão nesta casa que é a casa comum!
Dia 19 de abril se aproxima e é o segundo ano na qual se comemora “Dia dos Povos Indígenas” e não mais “dia do índio” , mudança que veio através do projeto de lei 5466/19 da deputada Joênia Wapichana, atual presidente da Funai. Segundo Joênia Wapichana “O propósito é reconhecer o direito desses povos de, mantendo e fortalecendo suas identidades, línguas e religiões, assumir tanto o controle de suas próprias instituições e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico”. Vale destacar que por muito tempo o termo índio foi utilizado de forma pejorativa e no atual momento utilizar “índigena, etnia, povos” é respeito a diversidade étnica existente entre os povos indígenas do Brasil.
Dia 19 de abril não é apenas uma data para representar a figura do indígena na sociedade, mas um momento de reeducar, ensinar e compartilhar saberes, refletir sobre como podemos contribuir para uma sociedade mais respeitosa diante da diversidade étnica existente nesse imenso Brasil.
Desse modo, a importância da Lei 11.645 para o reconhecimento e valorização da diversidade étnica-cultural no Brasil na qual inclui a lei no currículo escolar, abordando a temática nas atividades pedagógicas, além de contribuir para o combate ao racismo e preconceito, promovendo uma educação mais inclusiva, valoriza a história e cultura indígena e afro-brasileira.
Por: Eduardo Silveira Netto Nunes. Pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (UFAC). Docente de História da América/CFCH-UFAC e dos Programas de Mestrado Profissional em Ensino de História e do Mestrado em Educação, ambos na UFAC. Doutor em História Social (eduardo.nunes@ufac.br)
Liliane Araújo Maia Puyanawa. Formada em História Bacharelado – UFAC. Graduanda no curso de especialização das relações étnicos raciais Afro-Brasileira e Indígena. (liliane.maia@sou.ufac.br)
Para saber mais:
Ailton Krenak. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) : https://apiboficial.org/ e https://www.instagram.com/apiboficial/
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB): https://coiab.org.br/ e https://www.instagram.com/coiabamazonia/
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME): https://apoinme.org/ e https://www.instagram.com/apoinme_brasil/
Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ARPINSUL) https://www.instagram.com/arpinsuloficial/
Hutukara – Associação Yanomami: http://www.hutukara.org/
Associação Terra Indígena Xingu (ATIX): https://www.facebook.com/atixxingu
Sobre a centena de organizações dos diferentes povos indígenas no território brasileiro, consultar: https://pib.socioambiental.org/pt/Organiza%C3%A7%C3%B5es_ind%C3%ADgenas
Sobre a demarcação das terras indígenas, consultar: Fundação Nacional dos Povos Indígenas – https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas
Sobre nova lei do dia dos povos indígenas: https://www.camara.leg.br/noticias/896465-nova-lei-denomina-o-19-de-abril-como-dia-dos-povos-indigenas-em-substituicao-a-dia-do-indio/