A democracia nunca floresceu, vigorosa, em solo brasileiro. Não poucas vezes, após florescer, murchou e foi pisada. Principalmente, foi pisada por coturnos. Para nossa tristeza, temos uma história marcada por golpes de Estado, revelando uma dinâmica em que o sucesso de um golpe alimentava outro, que alimentava outro, que alimentava outro…
Ao observador atento, claro fica que a anistia é um elemento central nessa dinâmica. Revisando a história de nossa difícil República, podemos dizer que essa sequência a descreve muito bem: golpe, anistia, golpe… Por esse prisma, golpe e anistia formam uma cadeia, em que um leva ao outro.
Nesse sentido, a anistia não é um hiato entre golpes. Tampouco, é – pela via da afamada “pacificação” – a superação de um golpe, como pode pensar o vulgo. Em verdade, ela é, sempre, queiram seus promotores ou não, uma preparação de golpe. Isto porque ela livra os golpistas das penas de seus crimes, blindando-os contra a justiça; por vezes, premiando-os com prestígio e permitindo que continuem ocupando espaços de poder.
Não expressão de fraqueza dos golpistas de cada momento, mas de força. Em razão disso, a anistia é, no sentido mais preciso da expressão, elo entre um golpe e outro. Ao deixar que, em cada período de transição, os inimigos da democracia continuem ditando regras, o instituto da anistia dá-nos uma visão surpreendente de nossa história política. Nós não temos uma história democrática cortada, aqui e acolá, por golpes de Estado. O que temos, para nosso pesar, é uma história de golpes de Estados cortada, aqui e acolá, por breves e frágeis períodos democráticos.
Sob essa luz, avulta a importância do recente julgamento dos golpistas pelo STF. Justiça. Como todos sabem, trata-se de algo inédito. Cabe ressaltar, ainda, que os condenados representam ilustres figuras de um grupo politicamente forte e muito articulado, dentro e fora do país, com expressiva presença no parlamento e no judiciário – que o diga o ministro Fux, bem como André Mendonça e Nunes Marques.
Na atual conjuntura de “revoluções coloridas”, esse grupo golpista requer atenção especial. Um golpe militar clássico é mais fácil de ser percebido, porque representa de maneira cristalina uma ruptura calcada na violência, como se uma força vinda de fora (ou aparentemente estranha às ordinárias relações políticas) irrompesse, rasgando o tecido democrático. Diferente, é quando a força política, mesmo sendo essencialmente golpista, cresce se valendo do regime democrático, a exemplo da extrema direita que ora temos sob nossos olhos.
Ora, não é sem motivo que, para alguns, aplicar o golpe seria um direito dos golpistas. Usem os termos que usarem, no fundo, é isso o que dão a entender aqueles que, agora, reivindicam anistia. Dessa vez, porém, os intentos dos golpistas foram frustrados, rompendo a cadeia já aludida (golpe, anistia, golpe). E, para romper essa nefasta cadeia, só colocando os golpistas na cadeia. Cadeia contra cadeia.
A decisão foi tomada. Mas é preciso que seja mantida. E que, na história vindoura, seja lembrança viva e marcante, como um austero aviso aos pósteros golpistas. Compete-nos nunca esquecer que a história não é ato. É processo. O mesmo se pode dizer do golpismo. Por isso falamos de golpismo, e não apenas de golpe. A resistência democrática deve seguir a mesma lógica e afirmar-se a cada instante, diuturnamente.
Dito de outro modo. Celebremos a vitória. Merecemos. Contudo, sem lugar ingenuidade. A luta ainda está em curso. Vencemos uma batalha, não a guerra. De mais a mais, por conta da atuação dos golpistas no parlamento, no judiciário e nos EUA, os democratas não podemos ceder à retórica de pôr fim à polarização.
Em primeiro lugar, porque é necessário se opor e polarizar com tudo o que seja antidemocrático. É, a um só tempo, questão de honra e sobrevivência! Em segundo lugar, porque, embora não possamos nos valer dos mesmos meios que os golpistas, devemos ser tão ou mais tenazes e contundentes quanto eles. Não podemos nos furtar a usar as armas que a democracia nos oferece.
No mais, imaginem. Bolsonaro, o líder da organização criminosa golpista, foi condenado e pode ficar inelegível até o ano de 2060. Guardem as pedras. Não cuidem que quero mal a ele. Não mesmo. Ao contrário. Desejo a ele vida longa, longuíssima, para cumprir todos os dias de cadeia que lhe cabem. Nem um a mais, nem um a menos.
Bolsonaro, líder da organização criminosa golpista… Isso soa bem. Repitam comigo: Bolsonaro, líder da organização criminosa golpista… Ah… Como é catártico e libertador poder dizer isso amparado no direito, com a chancela da mais alta corte de nossa justiça.
Escapou-me um sorriso. Não. Escapou-me uma gargalhada. É raro. Eu sei. Mas, às vezes, e esse é o caso agora, justiça rima com felicidade, apesar dos pesares. Para dizer com o personagem de Fernanda Torres, no filme Ainda estou aqui, “Nós vamos sorrir”.
Os golpistas que tirem seu prato do caminho. Nós vamos passar nosso riso e nossa felicidade.




