Em outubro, no Brasil, é celebrado o Dia das Crianças, nesta ocasião os espaços se enchem de brinquedos, ganham cores e os discursos são pautados na ideia de que toda criança merece ser feliz. No entanto, ao olhar mais de perto para as diferentes infâncias que existem em nosso país, percebemos que nem todas as infâncias são protegidas e celebradas da mesma forma. As infâncias negras, em particular, seguem atravessadas pelo racismo, pelas desigualdades históricas e estruturais, pelos estigmas e pelas violências que negam a elas o direito pleno de sonhar e impõem a necessidade constante de resistir.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069/1990, é base legal que assegura, especificamente, em seu Art. 4º, à criança e ao adolescente os direitos básicos, como a vida, a saúde, a educação, a dignidade e ao respeito (Brasil, 1990). Dessa forma, em teoria, o ECA consagra, por meio da prioridade absoluta, o direito de que toda criança deve sonhar e ser protegida em sua dignidade. No entanto, para as crianças negras no Brasil, esse texto legal, repleto de promessas de um futuro justo, é corrompido diariamente pela realidade brasileira atravessada pelo racismo, que impõe uma violência que revela que a prioridade garantida por lei não se aplica integralmente à vida, à segurança e ao desenvolvimento de crianças negras.
Desde muito cedo, crianças negras têm seus corpos, tão precocemente, racializados, esse processo é um reflexo direto do que a psicóloga Cida Bento teoriza como Pacto da Branquitude (2022). O racismo é apoiado por um pacto entre pessoas brancas para a autopreservação de privilégios, nesse contexto, o corpo branco é visto como a norma, tornando automaticamente o corpo negro como o desvio (Bento, 2022). A partir deste campo conceitual as crianças negras são lidas por meio dos estereótipos negativos e constantemente condicionadas desde a primeira infância, a estrutura de desigualdade que beneficia o grupo que se auto afirmar como o padrão, sujeitando crianças negras a adultização precoce e exigindo maturidade emocional para lidar com agressões que nem mesmo os adultos deveriam suportar.
O racismo assume diversas roupagens e atravessa o brincar, o aprender e o imaginar, ele aparece quando os brinquedos negros não estão na prateleira, quando a mídia não apresenta pessoas negras, quando os livros de literatura não contam as histórias da população negra e quando o cabelo e a pele negra são alvos da inferiorização. Ele se manifesta também nas brincadeiras racistas, nas expressões racistas naturalizadas, na ausência de acolhimento e escuta atenta para a dor das crianças negras em diversos ambientes e na ausência de representatividade positiva. Enquanto algumas crianças são protegidas e resguardadas pela ideia universal de infância, outras são impelidas para a dor e para o medo.
A ineficiência de proteção para com as infâncias negras, como destaca a professora doutora Lucimar Rosa Dias (2022), compromete e impede o desenvolvimento pleno e saudável dessas crianças, resultando no desencadeamento de implicações físicas e mentais. A infância é um solo fértil onde é possível moldar o desenvolvimento humano baseado nas relações em sociedade, entrelaçando os aspectos físicos, mentais, emocionais e sociais. Assim, essa experiência prematura com racismo marca profundamente o modo como crianças negras se percebem e se posicionam no mundo, impondo a elas o peso de compreender o racismo antes mesmo de saber nomeá-lo.
Que o Dia das Crianças se constitua para além de presentes e celebrações, que cada sorriso seja acompanhado de proteção, que cada brincadeira seja marcada pelo respeito, e que cada sonho seja nutrido com afeto, pois a cada vez que uma criança negra brinca, sorrir e se reconhece séculos de desumanização são vencidos. Que seja uma provocativa para reconhecer que todas as infâncias merecem ser vividas plenamente e livres de qualquer tipo de violência.
Por um outubro em que todas as infâncias sejam respeitadas!
Escrito por:

Ana Ingridy Silva Rodrigues – Pedagoga licenciada pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena pela mesma instituição. Discente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Acre (PPGE/Ufac). Membra do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).




