Por: Jardel Silva e Nedy Bianca
Arte: Geovanna Moraes de Almeida
Essa semana se comemora os 200 anos do “Grito do Ipiranga”, embora muitos historiadores digam que a independência foi um processo que teve início com a chegada da família real portuguesa em 1808 e só se encerrou com abdicação de Pedro I em 1831. Consensual são as análises de historiadores, antropólogos e sociólogos ao afirmarem que tanto a chegada da família real, quanto a independência, não melhoraram as condições de vida das populações negras e indígenas, tampouco delimitaram o encerramento da escravidão no Brasil (visto sua manutenção até 1888) apesar da Abolição ser considerada como fator finalizador do regime imperial.
Então, em lugar de comemorações ufanistas, que fazem vista grossa ao racismo estrutural e institucional, vamos pensar se de fato a Independência fez a maior parte da população se tornar independente? Puxando pelo parágrafo anterior é fácil responder: Não! Mas, e o 13 de maio de 1888? Do mesmo modo se dirá que a data não significou inclusão social, política ou econômica, visto a inexistência de políticas de integração das populações negras e indígenas, sendo essas as pautas centrais de reivindicações dos Movimentos Negros e Indígenas.
Estas reclamações tiveram dentre outros desdobramentos a criação da Lei 11.645/20081, que tornou obrigatório o ensino de História da África, Cultura Afro-brasileira e Indígena nos currículos escolares de instituições públicas e privadas, assim como a Lei 12.711/20122 com a instituição de cotas para ingresso em instituições públicas de ensino superior. Se a primeira demarcou a exigência de reconhecimento das contribuições de negros e indígenas à construção nacional, a segunda busca garantir incorporação destes na estrutura socioeducacional do país. No entanto, ambas as legislações passam por implantações face a muitos opositores.
Em específico, cabe recordar que em 2 de agosto de 2022, a Lei 12.711/2012, também conhecida como “Lei de Cotas”, completou seus 10 anos de vigência. Porém, desde janeiro de 2019 a legislação estava ameaçada de extinção sob o pretexto de caráter revisional. Tais circunstâncias reavivaram o compromisso do Movimento Negro por uma sociedade e uma educação antirracista, onde defender essa modalidade de ação afirmativa significa democratizar ainda mais o acesso ao ensino superior, historicamente marcado por uma hegemonia branca.
Isto porque a referida norma legal possibilitou a entrada das populações negras, indígenas, deficientes, de baixa renda e oriundos de escola pública nas universidades públicas. Desta maneira proporcionando uma pluralidade de saberes em sala de aula, trazendo em sua essência a diminuição das desigualdades econômicas, políticas e sociais, visto que considera critérios étnico-raciais, condições de saúde, renda familiar e o papel da rede pública como formadora do estudante.
(Re)pensar esse mecanismo é necessário para verificarmos os avanços, e aspectos que necessitam ser aprimorados enquanto ações compensatórias3 decorrentes de direitos exigidos pelo Movimento Negro. Rever essa prática significa aprimorá-la, para que forças contrárias à justiça social não invalidem o referido discurso, distintamente dos rumos pretendidos pelo executivo nacional a partir de 2019.
Então, fortalecendo esse dispositivo de integração, no ano de 2022, a Universidade Federal do Acre (Ufac), intermediado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígena (Neabi/Ufac), criou bancas de heteroidentficação na instituição4, a fim de assegurar o uso desta política pelas populações negras e indígenas para acesso às universidades. Esse mecanismo, apesar de ser inicial, é um grande fortalecedor da Lei de Cotas, pois consolida a entrada dessas populações politicamente minorizadas (a despeito de serem numericamente maioria nos censos demográficos), invalidando as fraudes mobilizadas por pessoas brancas que tentam adentrar o ensino superior público através das cotas raciais. Ademais, a possibilidade do ingresso de alunos negros e indígenas no ensino superior através do Sisu também repercute no serviço público, com a incidência de percentual cotista na contratação destes sujeitos sociais como professores e técnicos nas universidades.
Portanto, ao escrevermos essas reflexões, considera-se o espaço educacional como ambiente de grandes lutas de ideias5, no qual o Movimento Negro vem pelejando para obter respeito à cultura, modos de vida, saberes e fazeres. E é nessa perspectiva de valorização que se defende a norma legal aqui comentada, pois as populações negras e indígenas querem ser percebidas em cada canto do universo escolar, passando do porteiro até a reitoria, oxalá mesmo na cadeira de ministro da educação.
Alcançar esse objetivo demanda que nas instituições de ensino superior negros e indígenas sejam participantes proporcionais ao percentual da população brasileira. E estando lá, permaneçam enquanto estudantes e produtores de conhecimento, desenvolvedores do ensino, pesquisa e extensão por uma plena representatividade da pluralidade étnica-racial e social, por isso, concluímos afirmando que a Lei 12.711/2012 e consequentemente as bancas de heteroidentificação são partes constitutivas da luta por justiça social na Ufac.
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[1] BRASIL. Lei 11.645/2008. Brasília: Senado Federal, 2008.
[2] BRASIL. Lei 12.711/2012. Brasília: Senado Federal, 2012.
[3] SANTANA, Carlos. Abdias do nascimento: atuação de um negro no parlamento brasileiro 1983 – 1986. In: Revista Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n. 2, Mai. 2015. Disponível em: http://www.simonsen.br/revista-digital/wp-content/uploads/2015/05/Revista-Simonsen_N2-Carlos%20Santana_Historia.pdf. Acesso: 11 ago. 2022.
[4] UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE. Resolução Consu n.51, de setembro de 2021. Regulamenta procedimentos de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos na modalidade de cotas raciais dos processos seletivos para ingresso nos cursos de graduação da Ufac e dá outras providências (Alterada pela Resolução Consu n. 92, de 26 de julho de 2022). Disponível em: http://www2.ufac.br/site/ocs/conselho-universitario/resolucoes/resolucoes-de-2021/resolucao-consu-51_23-09-2021_regulamenta-procedimentos-de-heteroidentificacaocomplementar-a-autoidentificacao.pdf. Acesso: 03 set. 2022.
[5] GOMES, Nilma. Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
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Jardel Silva França – Mestrando em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade Federal do Acre (PPGLI/Ufac). Especialista em Educação Especial Inclusiva, pela Faculdade de Educação Superior Euclides da Cunha (Inec). Licenciado em História (Ufac). Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).
Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Graduada em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac) e em Direito pela União Educacional do Norte (2008). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/Ufac).