“Dizem que São João é tempo de festa, mas nem todos chegaram até ele sorrindo.”
Em meio aos balões coloridos e ao som alegre do forró, há histórias que nunca foram contadas com tanto brilho. Histórias de corpos rejeitados, de vozes caladas, de identidades empurradas para os cantos da fogueira. Mas também são histórias de resistência, de afeto reconstruído, de pertencimento conquistado a passos de quadrilha. Este texto é sobre aqueles que, entre uma roda e outra, encontraram no palco da cultura popular o lugar onde puderam, enfim, ser quem são.
A luta LGBTQIAPN+ é uma travessia longa, construída com coragem diante da dor, da exclusão e da violência. Um dos marcos mais emblemáticos dessa caminhada foi a Rebelião de Stonewall, em 28 de junho de 1969.

Naquele dia, frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York — majoritariamente pessoas trans, negras e latinas — decidiram resistir à violência policial. Durante dias, o bairro fervilhou com manifestações que dariam origem ao movimento moderno pelos direitos LGBTQIA+. Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, duas mulheres trans racializadas, foram protagonistas desse levante, que até hoje é lembrado no mundo inteiro como o nascimento do orgulho.pressão e à violência, tendo como marco a Rebelião de Stonewall, em 1969, nos Estados Unidos, quando pessoas LGBTQ+ resistiram a uma batida policial em um bar de Nova York. A partir daquele levante, surgiram os primeiros protestos por liberdade e direitos civis. No Brasil, durante os anos 90, falava-se em GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), mas a sigla foi evoluindo para incluir outras identidades e orientações, até chegarmos ao LGBTQIAPN+ de hoje — uma sigla que abraça a pluralidade das vivências e reafirma o direito de existir em todas as formas de ser e amar.
Além disso, ser LGBTQIAPN+ muitas vezes significa enfrentar ainda mais barreiras para conseguir um emprego digno. Muita gente é empurrada para a informalidade, ou até para a exploração do próprio corpo como única forma de sustento — sem julgamento algum sobre quem escolhe esse caminho, mas é importante lembrar: há milhares de jovens talentosos, criativos, com habilidades incríveis — seja em design, vendas, ou com sonhos de serem médicos, professores — que são barrados antes mesmo de começarem. Vivem uma batalha silenciosa para sobreviver em um país onde a violência contra a nossa comunidade ainda é brutal. A luta por respeito, dignidade e oportunidades segue sendo urgente.
Dito isso, quero falar sobre algo que sempre foi um refúgio, um escudo e, ao mesmo tempo, uma ponte para a comunidade LGBTQIAPN+: a cultura. Foi através dela — da música, da dança, da performance, do figurino, do brilho e da liberdade de expressão — que muitas pessoas encontraram um espaço para existir sem medo. Em especial, meninas trans, travestis e drags que, por tanto tempo, foram empurradas para as margens da sociedade, encontraram na arte um lugar onde não eram apenas aceitas, mas celebradas.
Em muitas famílias, meninas trans ainda são tratadas no masculino, apagadas em sua identidade e impedidas de viver quem realmente são. Algumas são expulsas de casa, outras aprendem a esconder a dor em silêncio. No entanto, nos tablados das quadrilhas juninas, essas mesmas meninas encontram um espaço onde podem se reinventar — e muitas vezes é na arte que isso acontece. Montar-se não é apenas uma performance estética, é um ato de resistência e afirmação de si. Quando sobem ao palco com seus vestidos exuberantes, maquiagem forte e saltos altos, essas artistas não estão só encenando um espetáculo: estão vivendo, com orgulho, aquilo que por tanto tempo lhes foi negado. A cultura junina, nesse contexto, transforma-se em um espaço de acolhimento e liberdade, onde a fantasia revela verdades e a arte dá forma ao que o preconceito tentou silenciar. A cultura popular, muitas vezes vista como algo “menor”, foi uma das primeiras a abrir as portas para essas identidades. E as quadrilhas juninas, como a nossa Sassaricano na Roça e assim como todas as outras, são exemplos vivos disso. Aqui, meninas trans ocupam o tablado com orgulho, drags desfilam com suas criações exuberantes, e travestis não só dançam, como comandam, lideram, ensaiam, produzem. Elas não estão à margem — são o centro, a alma, o coração do espetáculo.
É importante dizer que esses espaços culturais não surgiram prontos para acolher. Foi uma conquista. Foram anos de enfrentamento, de resistência, de ousadia. Cada salto alto usado em meio à poeira do tablado, cada batom aplicado com firmeza antes da apresentação, cada bordado feito com amor em figurinos exuberantes — tudo isso é luta. É construção de pertencimento. É reinvenção da existência.
A cultura, nesse sentido, não é só entretenimento. Ela é instrumento político, educativo e afetivo. E quando abraça a comunidade LGBTQIAPN+, especialmente em contextos populares e periféricos, ela salva vidas. Ela ensina que amar, brilhar e resistir não são atos de vergonha, mas de coragem.
Para entender ainda mais a importância de espaços culturais como a quadrilha Sassaricano na Roça na vida de pessoas LGBTQIAPN+, conversei com duas integrantes que carregam em suas trajetórias marcas de resistência, coragem e transformação: Lila Facquini e Angel Mendonça. Suas falas mostram que a cultura não é apenas um palco de expressão artística, mas também um território de afeto, reconstrução e pertencimento. Lila compartilha como, ao ingressar na quadrilha, sentiu-se pela primeira vez verdadeiramente vista e respeitada em sua identidade. Angel, por sua vez, relata como o grupo foi o primeiro ambiente onde pôde ser quem é de forma plena, sem medo ou julgamento, graças ao acolhimento e à representatividade presentes no grupo. As experiências de ambas reforçam que o impacto da cultura vai muito além do figurino e da coreografia — ele transforma vidas, fortalece identidades e semeia liberdade.
Angel Mendonça, mulher trans e dançarina da Sassaricano, vê no grupo um lugar de pertencimento, liberdade e resistência. Conversando com Angel Mendonça, percebemos com ainda mais profundidade o quanto espaços culturais como o nosso são campos de resistência e afeto. Para ela, estar em uma quadrilha junina sendo uma mulher trans é tanto gratificante quanto desafiador. Apesar dos avanços, ainda existem barreiras em relação ao acolhimento e ao respeito. No entanto, Angel ressalta que se sente livre dentro do grupo, especialmente por ter uma referência poderosa como Hanashara — presidenta e rainha da quadrilha —, que representa com força a identidade trans e atua como uma verdadeira mãe para as meninas. Angel descreve a Sassaricano como a primeira quadrilha a acolhê-la da forma certa, fazendo com que ela se sinta pertencente e realizada. Ela dança por amor e diz que, mais do que os prêmios, é a emoção de estar em um espaço onde se sente parte que a move. Em suas palavras, “a vida é feita de riscos”, e é preciso se permitir para sentir a alegria de ouvir um “olha pro céu, meu amor”, de se arrepiar com o bailado e de rir com a tradicional peça de casamento. Para ela, dançar e ocupar esse espaço é a prova de que pessoas trans e travestis podem e devem estar onde quiserem, mostrando que a vida pode ser bela quando se encontra pertencimento, expressão e liberdade.
Lila Facquini, integrante da Sassaricano, encontrou na quadrilha um espaço de acolhimento e fortalecimento da autoestima. Facquini também compartilhou sua vivência e reforçou o quanto a cultura pode ser um abraço para quem, muitas vezes, só conheceu o silêncio ou a rejeição. Crescendo em um lar cristão, Lila nunca teve liberdade para ser quem realmente é — até encontrar a Sassaricano. Aqui, segundo ela, não há limitação para sua identidade e nem espaço para a discriminação. A possibilidade de estar em um grupo onde o orgulho LGBTQIAPN+ é celebrado e não ocultado fez com que ela se sentisse mais confiante, mais viva e com a autoestima fortalecida. Embora tenha ingressado há pouco tempo no mercado de trabalho, relata que encontrar um espaço cultural onde possa se expressar sem medo é, acima de tudo, um alívio. Para quem ainda tem receio de se jogar nesse tipo de vivência, ela manda o recado: “Vá com medo mesmo!” — porque no caminho, o acolhimento certo faz o medo desaparecer. Para Lila, ocupar o tablado é também ocupar um lugar que historicamente foi negado à comunidade LGBTQIAPN+; é ser visível, é mostrar ao mundo que há beleza, talento e força em cada expressão de diversidade.
Em um país onde políticas públicas ainda falham em garantir acesso à educação, saúde e trabalho para pessoas LGBTQIAPN+, os espaços culturais têm cumprido um papel vital. Eles acolhem onde muitas vezes a família rejeita, ensinam onde a escola omite, valorizam onde o mercado exclui. Nesse sentido, a cultura popular — e, de modo muito especial, as quadrilhas juninas — é mais do que uma tradição: é um abrigo. Grupos como a Sassaricano na Roça não apenas permitem que a diversidade exista; eles a celebram. E, para quem já se sentiu estranho no mundo, encontrar um lugar onde possa brilhar com liberdade é como finalmente voltar para casa.
Com 22 anos de trajetória, a Sassaricano na Roça é mais do que uma quadrilha junina: é um verdadeiro lar para quem busca acolhimento, expressão e liberdade. Desde sua fundação, o grupo tem sido um espaço onde a diversidade floresce e é celebrada. Entre seus membros, há pessoas LGBTQIAPN+ que estão no grupo há mais de uma década — algumas com mais de 40 anos de idade — que seguem firmes, dançando, criando, liderando, ensinando. Isso é resistência viva. Isso é legado.
A história da Sassaricano é construída por muitas mãos, muitos corpos e muitas vozes que desafiam as normas e transformam o São João em um espaço de inclusão e amor. Que esses 22 anos sirvam de exemplo para que outros grupos culturais também se abram para a diversidade, não como exceção, mas como parte fundamental do que é ser cultura popular. Porque quando uma quadrilha acolhe com verdade, ela não forma apenas um grupo: ela forma família.
REFERÊNCIAS:
[1] Alcântara, Fernanda. Stonewall, conquistas e desafios das manifestações LGBTs. MST, 28jun. 2019. Disponível em: [https://mst.org.br/2019/06/28/stonewall-conquistas-e-desafios-das-manifestacoes-lgbts/](https://mst.org.br/2019/06/28/stonewall-conquistas-e-desafios-das-manifestacoes-lgbts/). Acesso em: 14 jun. 2025.
[2] Entrevista concedida por Angel Mendonça à autora, realizada em junho de 2025.
[3] Entrevista concedida por Lila Facquini à autora, realizada em junho de 2025.
[4] Facchini, Regina. “Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90.” Sexualidad, Salud y Sociedad, nº 4, 2009.
Helenayra Moreira do Nascimento – Bacharelanda em História pela Universidade Federal do Acre