Stanley Kubrick transformou Laranja Mecânica (1971) (A Clockwork Orange) num soco no estômago que até hoje deixa a gente sem ar. O filme pega o romance de Anthony Burgess e joga na nossa cara uma pergunta que não sai da cabeça: dá pra consertar um monstro só mexendo no corpo dele, ou a maldade fica ali, quietinha, esperando a hora de voltar?
No centro de tudo está Alex DeLarge, vivido por um Malcolm McDowell absolutamente possuído. Ele improvisou várias cenas que viraram lenda, a mais famosa é cantar “Singin’ in the Rain” enquanto espanca e estupra o casal de escritores. Kubrick adorou tanto a ideia que refez a sequência inteira em cima daquele improviso. O resultado é uma das coisas mais desconfortáveis já filmadas, porque a violência ali não é só brutal: é alegre, criativa, quase dançante.

Alex e seus droogs falam nadsat, aquela língua maluca que mistura inglês, russo e palavras inventadas por Burgess. O nadsat não é apenas um recurso estilístico: ele simboliza a formação identitária de um grupo juvenil que vive à margem, construindo sua própria linguagem e seu próprio código moral, o que evidencia a distância entre a juventude violenta e a sociedade disciplinadora que tenta contê-la. É como se aqueles garotos tivessem criado um mundo próprio, com regras próprias, onde bater, roubar e estuprar é arte. A sociedade adulta, com suas leis e prisões, parece ridícula perto disso.
Aí vem o Tratamento Ludovico, a grande piada cruel do filme com o behaviorismo radical de B.F. Skinner. A ideia é simples: prendem Alex numa cadeira, abrem os olhos dele à força com grampos (sim, é tão horrível quanto parece) e o obrigam a assistir filmes de ultraviolência enquanto injetam uma droga que provoca náusea insuportável. Resultado? Depois de duas semanas, só de pensar em socar alguém o estômago dele revira. O comportamento violento foi extinto. Parabéns, ciência.

Mas Kubrick não está aplaudindo. Ele está rindo da cara do behaviorismo. Porque, como o padre da prisão grita: “Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser homem”. Alex sai “curado”, mas vira um boneco. Não consegue mais bater em ninguém… nem se defender quando apanha. Não consegue mais fazer o mal, mas também não escolhe fazer o bem. Ele continua odiando, continua sarcástico, continua sendo o mesmo Alex por dentro. Só perdeu o botão de ligar.
E a sociedade? A sociedade odeia o Alex “curado” ainda mais do que odiava o Alex assassino. As vítimas querem vingança, os ex-amigos querem humilhar, os pais não querem ele em casa, a polícia usa ele como saco de pancada. Ninguém dá segunda chance. Todo mundo quer castigo eterno. O filme mostra que a gente adora gritar “reabilitem os bandidos!”, mas na hora do vamos ver prefere linchar.

No final, o governo reverte o condicionamento por conveniência política e devolve o velho Alex, sorrindo, tarado e pronto pra recomeçar. Agora sob o olhar cúmplice de um governo que busca apenas ganho político. Nada mudou: nem ele, nem a sociedade, nem o Estado. A “cura” era apenas mais uma engrenagem de controle.

O mais louco é que o filme assustou tanto que virou realidade fora das telas: foi banido em vários países, e no Reino Unido o próprio Kubrick pediu pra tirar de cartaz depois que famílias receberam ameaças e a imprensa culpou o filme por crimes reais. Só voltou a ser exibido lá depois que ele morreu, em 2000.
Laranja Mecânica não é só um filme violento. É um espelho. Mostra que dá sim pra condicionar o corpo, mas não a alma. Que sociedade nenhuma aceita de verdade quem errou. Que poder nenhum quer gente livre, quer gente obediente. E que, no fim das contas, tirar o livre-arbítrio de alguém não cria um santo… cria uma bomba-relógio com cara de laranja.
Depois que assistimos pensamos: quem, afinal, é a verdadeira laranja mecânica aqui? Alex ou o sistema que tentou consertá-lo?
Por: Daniel Allyson




